Diário de Viagem - Dia 9
Diário de Viagem – Dia 9
Acordo hoje com o sentimento de que, esta lebre está quase corrida, faltando apenas esse pequeno senão que se chama: quase!
Tal como as finais são para se vencer, os destinos também são para se cumprir, e esta é a nossa sina; pedalar até atingirmos aquela pedra rectangular que anuncia o fim de todas as viagens de todos os que aí se propuseram chegar e, acreditem, vêem mesmo de toda a parte!
O dia de ontem foi prazenteiro, um dia de Verão minhoto com algum calor mas também muita frescura à mistura, o que fez com que ficasse na nossa memória, como a etapa mais ligeira deste nosso percurso até terras de Santiago.
Saímos de Valença por essas nove horas, e em cinco minutos já estávamos do outro lado da fronteira depois de percorrida a velha ponte que atravessa o Rio Minho, essa fronteira comum aos dois povos irmão que habitam deste e do outro lado da fronteira, mas que afinal são a mesma gente, o mesmo querer e quase a mesma língua.
A estrada é boa e as escapatórias largas o que permite que circulemos em amena cavaqueira, sabendo que cada quilómetro a mais no nosso conta-quilómetros é um quilómetro a menos no que falta para lá chegar, e falta tanto e tão pouco, dependendo dos estados de alma.
Depois de Tui o nosso destino imediato é Porriño, distância que galgámos sem grande esforço, mas desengane-se quem pensar que este percurso são favas contadas. Santiago fica a 800 metros acima do nível do mar e depois de Padrón será sempre a olhar para cima, mas nessa altura faltarão apenas vinte e poucos quilómetros para o final, mas por hora ainda falta muito asfalto para galgar.
Em Porriño recuperamos a estrada que doutros anos conhecemos e Redondela fica ali a pouco mais de uma dezena de quilómetros. Já com Pontevedra na imaginação, vamos degustando a gloriosa paisagem das Rias Baixas que serpenteia em paralelo com a estrada por onde agora circulamos.
O grupo vai animado e alguém comenta o meu estado de saúde no pretérito ano, o que me faz lembrar as agruras de uma etapa que só eu sei o que passei com o raio da alergia solar. Todo o meu corpo latejava e à medida que avançava no terreno a minha cara ia-se desfigurando de inchada, mas isso são contas de outro rosário que já aqui contei e que só recordo, porque o Joaquim Piteira que vai aqui ao meu lado mo fez recordar.
A distância que falta percorrer já é só de dois dígitos e em breve faremos a nossa última paragem em Caldas de Reis. Quando aí chegarmos estaremos a pouco mais de 30 míseros quilómetros do nosso destino final.
Não demorou muito a que este posto avançado do nosso itinerário estivesse na nossa mira. Agora a hora é de relaxar, de nos alimentarmos bem, até porque o que a seguir virá, será duro osso de roer.
Por hora estamos em Caldas de Reis junto a este rio de águas sempre correntes que tem no meio uma espécie de ilha com um choupo que produz sombra galega da melhor qualidade, daquela fresca e frondosa.
Arlindo banhando-se da cintura para baixo, desfrutando da fresquidão da água num belo registo fotográfico.
Por aqui assentámos arraiais e piquenicámos à boa maneira portuguesa. Alguns dos meus confrades deliciaram-se lavando pés e alma na fresquidão das águas, outros lavavam-na por dentro a custo de cañas de Estrella ou mesmo San Miguel, já que mesmo em frente a este nano pedaço de paraíso existe um bar que nos serve de apoio a estes consentidos disparates.
Quando o Sol começa a fazer a sua curva descendente é hora de nos montarmos nas nossas máquinas e agora sim; fazer a última parte de um percurso que a mim me demorou nove dias a cá chegar e aos meus companheiros seis.
A partir daqui é sempre a subir, e mesmo conhecendo o caminho, temos sempre a esperança que depois daquela subida a estrada aplane, mas não, é outra e mais outra subida.
Antes de Caldas já tínhamos feito a subida das bombas (como lhe chamamos) e que foi um belo petisco de vários quilómetros sempre a subir, assim, só para abrir a pestana!
Santiago já se perfila no nosso horizonte e, agora, não há cansaço que resista a uma força que fomos buscar sabe-se lá onde. A Praça Obradoiro já está ali quase á mão de semear e o quilómetro zero, já quase que o posso sentir debaixo da planta do meu pé.
Animados por esta alegria chegámos à cidade velha, local onde pontuavam milhares de peregrinos que chegados das mais variadas latitudes exultavam de alegria, e é também essa espécie de encantamento que aqui nos trouxe; uns por razões religiosas, outros por razões espirituais, outros mesmo por mera curiosidade, mas todos sem excepção se deixam enfeitiçar pelo espírito mágico que nesta cidade se respira.
A chegada á praça Obradoiro em dia de Xacobeo, será momento inesquecivel nas nossas vidas.
El dolor és temporal - la glória es para siempre!
El dolor és temporal - la glória es para siempre!
Chegámos dia 24 de Julho, véspera do Xacobeo, dia do nascimento do santo que dá nome à cidade.
Nesse dia, não nos foi possível chegar ao quilómetro zero já que a Praça estava a abarrotar de gente que esperava há horas pela melhor posição para ver os afamados fogos que ilustram de cor os céus de Santiago e que eu nunca tinha visto nem sei se voltarei a ver já que tal magnânimo espectáculo só se repetirá em 2021.
Aqui postarei outras crónicas sobre o tempo que passámos em Santiago, por agora, chegámos ao nosso destino, e mais uma vez cada um de nós depois do fraterno abraço da união, recolheu-se em si no meio da multidão e endereçou os seus pensamentos aqueles a quem mais quer.
Não sei se cá voltarei no próximo ano, mas uma coisa é certa, se tiver vida e saúde andarei por aí montado na minha varanda ambulante distribuindo olhares onde me possa perder, nem que seja por meros instantes.
Y asi es mi vida
Piedra como tu.
Piedra como tu.
Quero aqui agradecer a todos os que contribuíram para que esta viagem fosse de novo um sucesso.
Ciclistas:
Joaquim Miguel
Joaquim Piteira
António Piteira
Vítor Reis
Ricardo Casaca
Arlindo Pereira
Napoleão Mira
Apoios Motorizados
José Carrageta
António Lobo
Maurício Cangalheiro
PS: No nosso coração viajou também o António Serrano, que não podendo pedalar, apareceu com a família em Santiago de Compostela. Para ele os desejos de um rápido restabelecimento e que rapidamente volte ao nosso convívio, até porque não há quem cante a moda como ele, e das saladas viajeiras que provei, e que me desculpem os outros cozinheiros. Não há pai para a do Serrano!
Distância total por mim percorrida: 1072 quilómetros