Tenho Fome de Inverno
Gosto dos dias quando começam a empequenecer. Daqueles que quando chego a casa e já só uma réstia de claridade sobra no horizonte a dizer-me que para lá do que vejo só existe o que posso imaginar.
Esta noite trovejou. Acordei com o ribombar dos trovões e com as primeiras notas de uma música sincopada a derramar a melodia da água bendita que anuncia o final do Verão.
Eram quatro da manhã. Uma hora insuspeita para quem irrompe pelo silêncio da madrugada, fazendo-se anunciar como se de irados deuses se tratassem, sem pedir favores nem licença.
Fiquei acordado experimentando o medo que sempre sinto quando a revolta da natureza nos resolve presentear com avisos deste calibre.
Penso nos dias frios que estão para chegar, no aconchego do lar e no crepitar da lenha que me há-de fazer companhia nos tempos que aí virão. Penso na sincopada dança das labaredas que de tanto as fixar me hipnotizam e transportam para mundos que nem ouso aqui relatar. E sinto, que mais um ciclo se encerra para outro de novo se nos escancarar, e assim, cumprirmos o ritual da vida que não é mais do que andarmos de estação em estação no Expresso da Existência, até que um dia nos apeemos na estação terminal desta viagem.
Tenho fome de Inverno e do cheiro a lenha queimada que perfuma o entardecer quando aos fins-de-semana aporto à minha aldeia.
Tenho fome de Inverno, com ribeiras a transbordar, mais o perigo de as atravessar.
Tenho fome de Inverno, com ventanias a zunir por buracos e frestas tentando entrar sem que para tal haverem sido convidadas.
Tenho fome de Inverno, altura em que a poesia da vida e aquela que se traduz em letra de forma me visita mais amiúde, e isso, é privilégio que todos os dias agradeço, mesmo naqueles em que esta parece definitivamente de mim afastada.
Tenho fome de Inverno, com comida de panela e camisolas de gola alta.
Tenho fome de Inverno, com bolotas assadas no fogo debaixo da trempe.
Tenho fome de Inverno, com natais de mesa farta e lengalengas de contar a petizes ao colo sentadas com a perna a fazer de cavalinho. Lá vai o Manel ceguinho, em cima dum burrinho, o burrinho é fraco, em cima dum macaco……
Tenho fome de Inverno para te amar ao anoitecer e em todas as noites de insónia em que desenho com a ponta dos dedos vezes sem conta a silhueta da tua nudez.
Tenho fome de Inverno para me poder sentar ao postigo e ver a vida que passa em tons de cinza prata.
Tenho fome de Inverno, para devorar o livro, LIVRO do José Luis Peixoto, que julgo melhor saboreado, se lido em terra de emigrantes.
Tenho fome de Inverno, para poder voltar a abraçar-te sejas lá tu quem fores.
Tenho fome de Inverno, porque… tenho fome de mim!
16 Comments:
José Mestre,
"As minhas saudades são do tempo em que em termos climáticos havia primavera e outono."
José Mestre,
"Obrigado Napoleão por compartilhares conosco este lhndíssimo poema. Forte abraço"
Lurdes,Obrigado Napoleão. Adoro a maneira como escreves. beijos"
Adriana jacinto,
Lindo! Parabéns Napoleão. Tens uma escrita incrivel que apetece devorar!
Ana Paula Amorim,
Olá Napoleão ! Também , já tenho saudades do Inverno . lindas palavras .... Um ABRAÇO
Grande poema...até chegou ao Porto*:))
Haja saúde!
jm
*"da Ribeira até à Foz"(passando por Santiago,claro!).Ainda lá estou!
Alberto David,
Boas caro Napoleão, gostei do seu texto. Um abraço
Lidia Silvestre,
Que belo texto nos emprestas a ler. Não sei o que é que a tua escrita tem, mas sei que mexe comigo, e isso, é muito bom.
Já li o teu livro AO SUL e achei-o apenas: DELICIOSO, para que caiba tudo num só adjectivo.
Para quando um romance?
Abraço
Aí duro!!!!
Grande Poeta é o Povo...(um homem é do mar mija na cama e diz à mulher que está a suar)...
Parabéns meu amigo és grande em tudo até na poesia e no pedalar nem se fala (é sempre na talega grande)...
Um abraço
J.P.
Não sei como classificar este texto, mas que transborda poesia e da boa, não me restam quaisquer dúvidas.
É a primeira vez que por aqui passo a convite de uma amiga. Não costumo comentar blogues, mas desta vez não resisti.
Paulo Lacerda (ripas) para os amigos.
Este texto transportou-me à minha infância, na minha terra, outra freguesia desse concelho.
Pode crer que gostei da viagem e que me identifiquei com muito do que disse.
Com que saudade recordo o colo dos meus pais e a lenga lenga do burrinho...! E os serões intermináveis...!
Saudações cordiais e boa continuação
MT
Alex Cortez,
fizeste-me ficar com fome de inverno...
Alexandre Grazina,
Dos bons!
Nelson,
E não é que de repente fiquei com saudades do frio e da chuva!
Impressionante!
Quanto mais procuro neste blogue mais impressionado com este escritor fico. Só tenho pena de não o ter encontrado mais cedo.
Esta literatura fácil e ao mesmo tempo "cheia" de vida e experiências fascina-me bastante. E quando digo fácil refiro-me a acessível a todos, e não está ao alcance de qualquer um escrever de uma forma natural, sem ter de "encontrar" as palavras mais estranhas e mais "caras", mas ainda assim conseguir impingir a cada letra um sentimento e uma vivência que, de certa forma, levam o leitor a vaguear pelas suas próprias experiências.
Um grande abraço!
Caro Pedro Monteiro,
obrigado pelas tuas palavras. Embora sabendo o lugar que ocupo no mundo da escrita, é bom saber que existem por aí uns "malucos" que nos dão força para continuar.
A aquisição do "Ao Sul" com muitas das crónicas deste blogue é uma sugestão que te deixo sem qualquer interesse comercial.
À venda neste estaminé e na FNAC, embora aqui seja muito mais barato hehehe!!
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