Se!
No meu Ipod ecoam as minhas músicas favoritas, tenho à minha frente a estrada deserta que une Entradas à antiga estação de onde tantos de nós abalaram, alguns para não mais voltar.
A estrada onde circulo, foi a estrada que percorri aquando da minha prematura abalada para Lisboa.
Teria os meus seis anos e recordo-me como se fosse hoje do silêncio dessa caminhada, do vazio que de mim se apoderava e da promessa que cheguei a cumprir.
Um dia hei-de voltar – confessava eu repetidamente às minhas entranhas. A raiva e a impotência marcavam a cadência do caminho enquanto que a torre sineira que vi todos os dias da minha vida, desaparecia lentamente por trás do outeiro.
Ia eu entretido com estes pensamentos quando surge ao meu lado um desconhecido ciclista.
- Bom dia
- Bom dia – respondo.
- Então dando uma voltinha de bicicleta?
- Tem que ser, há que treinar.
- De onde vem – pergunto.
- De Castro Verde. E o amigo?
- De Entradas!
- Então você deve ser o Pulanito!
- Sou sim senhor...
E assim entabulei conversa com o João Matos que é um seguidor deste espaço ciclo-pensante.
Descobri que terá lido praticamente todos os posts e que deles tinha uma boa memória, logo, um conhecimento acerca deste escriba, bastante aprofundado.
Combinámos fazer juntos o treino e decidimos dirigir-nos a Aljustrel, que de resto era a estrada onde se desenrola esta conversa de desbloqueamento pessoal.
Como não tenho muitas perguntas a que responder, sou eu quem conduz o fatídico interrogatório situacionista.
Um recanto da adega
Muitas vezes depois de almoço fiquei á conversa com este amigo que agora partiu. Numa dessas vezes, já a meia tarde, toca o telefone. Isaías atende, do outro lado alguém diz :– fala da casa militar do senhor Presidente da República Dr. Mário Soares. O Senhor presidente gostaria de almoçar na sua casa no regresso da homenagem que vai fazer ao General Humberto Delgado em Vila Nueva del Fresno.
Depois de se certificar que não era nenhuma brincadeira Isaías responde – Mas a minha casa é uma adega, como é que vou receber aqui o Presidente da República, questionou.
- O Senhor Presidente sabe muito bem que é uma taberna e faz questão de almoçar na sua casa, e já agora gostava de comer migas.
- Mas pretende que feche a casa só para o Presidente, retorquiu.
- Não. Pode reservar uma ou duas mesas onde caibam 16 a 20 pessoas.
Fui testemunha deste episódio e posteriormente confirmei a passagem de Mário Soares por este local conforme combinado e de que Isaías guarda foto a celebrar tão importante acontecimento.
Ultimamente só via o amigo Isaías aquando da tradicional ida a Vila Viçosa para a encomenda dos cartazes para a corrida de touros de Entradas. Era então paragem obrigatória um lanche ou um jantar à do Isaías.
Depois da morte prematura de seu filho ( José Marcos), mestre Isaías ressentiu-se dessa maldade que a natureza lhe pregou, tendo desde então muita dificuldade em recuperar a mobilidade, mas mesmo assim não deixava de estar presente, recebendo os muitos amigos que lhe frequentavam a adega, mas que Isaías recebia, como se fosse o salão nobre de um palácio.
Continuarei a frequentar este local de peregrinação gastronómica, porque sei, que os que ficaram hão-de querer honrar o homem que colocou Estremoz e o Alentejo no mapa dos gastrónomos mais exigentes….e até um Presidente da República.
Quando aí for, olharei para a cadeira onde sempre o encontrei, e certamente com ele trocarei dois dedos de conversa. Espero que me volte a contar a estória do garrafão contendo aquela aguardente amarelinha que descobriu debaixo da cama e que lhe foi ofertado no dia do seu casamento há mais de 40 anos e que sempre me dava a provar de cada fez que me via, e o raio do garrafão nunca mais tinha fundo.
Descanse em paz...foi um prazer conhecê-lo amigo, se é que me concede a honra de assim o tratar.
PS: na minha agenda telefónica ainda consta assim o seu nome: Isaías - a melhor taberna do mundo.
Etiquetas: burras, Cozinha alentejana, cozinha dos ganhões, estremoz, Isaías Parreira, lebre com nabo, migas, Taberna do Isaías
A estátua de homenagem ao sapateiro em Almodôvar - dá para ver o tamanho comparada comigo.
Daniel - Guardador de sonhos
Quando passo esse marco do novo Alentejo que dá pelo nome de Vila Galé, viro agulha para Albernôa. No caminho à beira da estrada encontro o jovem pastor Daniel que me saúda. Paro para a foto que aqui vos trago e pergunto-lhe como vai a vida, ao que Daniel responde – Ele há lá melhor vida do que esta!
Nem sequer lhe respondo porque a minha concordância é total. Daniel assobia ao seu cão com os dedos mindinhos em cada um dos cantos da boca o que provoca uma estridência sonora que o cão entende no imediato, reunindo um par de cabras que se afastava do rebanho.
Tenho um especial fascínio por esta vida. Vêm-me á lembrança de imediato Alberto Caeiro, esse heterónimo de Fernando Pessoa que tinha no pastoreio e na contemplação da natureza o seu mister.
No Sábado dia 2 de Maio dou uma volta larga de 115 Km para compensar os 90 do dia anterior.
Domingo penso fazer uma volta de apenas algum desentorpecimento quando encontro á saída de Entradas um outro ciclista com quem entabulo conversa de imediato.
Como ando sempre sozinho, é um bálsamo encontrar alguém que nos amenize o caminho.
Diz-me ser de Aljustrel e ir até Almodôvar onde há uma concentração de Fiats 600. Disponho-me a acompanhá-lo, sem que antes lhe peça permissão a que este acede sem pestanejar.
Lá fomos desenrolando o rosário de quem se quer dar a conhecer. Fico a saber que o meu companheiro de viagem de seu nome Luis Alvaro, também está a treinar para ir a Fátima no próximo fim-de-semana.
Passámos Castro Verde, Rosário e em menos de duas horas estávamos em Almodôvar.
Luis pergunta-me se conheço a estátua do sapateiro. No meu registo mental tenho a ideia de ter visto uma estátua de um sapateiro, numa das múltiplas rotundas que agora inundam as nossas vilas.
Luís, meu companheiro de jornada
Luis conduz-me então para uma praça do interior da vila onde me apresenta o tal sapateiro, uma estátua descomunal feita de lixo metálico, peças velhas muita paciência e um engenho artístico do mais fino recorte.
Fiquei a saber que foi feita por um tal de Aureliano em 2001 e aqui lhe tiro o meu chapéu em forma de homenagem.
De Fiats 600 nem cheiro, de modo que fizemos meia volta e regressámos pelo mesmo caminho, triturando quilómetros atrás de quilómetros.
Curiosa estátua de homenagem aos soldados da paz
Visitámos ainda do mesmo artista a homenagem ao bombeiro, um estátua divertida, cheia de acção e movimento, relatando (a meu ver) um momento de urgência, como são afinal praticamente todos os momentos dos soldados da paz.
Gostei imenso deste trabalho, só que já tinha sido surpreendido pelo método de trabalho anteriormente, portanto o factor surpresa esvaiu-se.
Ao chegar a Entradas, trocámos telefones e combinámos futuras pedaladas juntos, o que seguramente irá acontecer e a breve trecho.
Bem sei que escrevo pouco, mas quando o faço é logo para toda a semana.
A partir de agora aqui trarei notícias mais atempadas, até porque os dias, são a partir de agora, riscados a X no calendário a uma velocidade quase estonteante.