Principe Valente
- Deixa-me apartar-te essa marrafa como deve de ser - dizia minha mãe algo furiosa antes de me puxar pelo braço e em passo apressado me arrastar pela mão em direcção ao caminho que iniciava o penoso percurso que deveríamos fazer a pé até chegarmos à paragem do autocarro que nos haveria de levar até ao Bairro de Alvalade, mais propriamente, à Avenida da Igreja, nº 25.
Acompanho a minha mãe neste dia de Verão, vou tirar fotografias para a escola à Foto Cabral, já que este ano (1966) entro no ensino secundário, na Escola Técnica Elementar Eugénio dos Santos, como era então chamada.
Chegados à Foto Cabral o fotógrafo pede à minha mãe que me volte a pentear. Esta molha o pente na bacia preparada para o efeito e volta a refazer-me o risco ao lado ficando eu com um aspecto assim a dar para o lambido.
O Sr. Cabral manda-me sentar num banco e colocar a cabeça assim meio á banda, meio a três quartos e ordena-me que sorria, enquanto que este com a cabeça enfiada num pano preto que é uma extensão da sua máquina, me vai ordenando com a mão direita que me mova ligeiramente para um dos lados onde o enquadramento seja mais favorável.
- Agora não te mexas. Olha para a máquina e sorri. Pronto já está; returque o Sr. Cabral enquanto se liberta do túnel de pano preto em que estava mergulhado.
- As fotos são normal ou urgente – Pergunta o diligente retratista.
- Quer meia dúzia ou uma dúzia. Se encomendar uma dúzia oferecemos-lhe uma foto 8x10 cm.
Minha mãe decide-se pela dúzia e pelo modo normal que vai demorar quinze dias, sendo que na próxima semana devemos cá voltar para verificar as provas e escolher a pose do produto final.
O nosso destino último, é um prédio na mesma correnteza desta avenida uns quantos números mais abaixo.
Minha mãe vai trabalhar a casa de Dona Teresa e nestes dias de Agosto a família da casa estará a banhos no litoral.
Subimos ao terceiro andar onde minha tia Felícia (a criada interna) nos abre a porta escancarando também o sorriso com que nos recebe.
Como os patrões não estão em casa, posso ir brincar para o sótão onde os meninos da casa possuem uma colecção de brinquedos, livros, jogos, lápis de cor e uma enorme pista automóvel para carrinhos eléctricos que é a minha perdição.
Minha mãe recomenda-me que não estrague nada sob pena de nunca mais aí voltar.
Estou no paraíso. Para um alentejanito com pouco tempo de Lisboa, cujos brinquedos consistiam num arco, pião e bilas, ter ali à minha mercê toda aquela parafernália de divertimentos, ainda por cima num sótão e só para mim, era assim como estar no céu.
Desde pequeno que gosto de ler, foi ali naquelas águas-furtadas que avidamente consumi toda a colecção do Tim Tim publicada até então, os livros do Príncipe Valente (de longe o meu herói favorito), os Mundo de Aventuras e tantos outros.
Quando tínhamos de voltar no dia seguinte levava-os à socapa para casa, para ler e reler até que o sono me vencesse e logo que acordasse, neles voltar a mergulhar em fantasias de sonhar acordado.
Era assim a vida dum Príncipe Valente do subúrbio em que me transformei. Construi com as minhas mãos uma espada feita de madeira de cabo de vassoura, que embainhava à cintura cirandando pelo bairro à cata de cinderelas para resgatar, não sem nunca derrotar em mortíferos duelos os seus imaginários algozes.
E minha mãe, a cada manhã da minha vida teimava em humilhar-me com aquela coisa de molhar o pente na água da bacia e apartar-me a marrafa.
- Mãe...Mãe, não se aparta a marrafa a um guerreiro. O príncipe Valente não tem marrafa, esbracejava eu durante os sonhos em que me transfigurava no meu personagem favorito.
Acompanho a minha mãe neste dia de Verão, vou tirar fotografias para a escola à Foto Cabral, já que este ano (1966) entro no ensino secundário, na Escola Técnica Elementar Eugénio dos Santos, como era então chamada.
Chegados à Foto Cabral o fotógrafo pede à minha mãe que me volte a pentear. Esta molha o pente na bacia preparada para o efeito e volta a refazer-me o risco ao lado ficando eu com um aspecto assim a dar para o lambido.
O Sr. Cabral manda-me sentar num banco e colocar a cabeça assim meio á banda, meio a três quartos e ordena-me que sorria, enquanto que este com a cabeça enfiada num pano preto que é uma extensão da sua máquina, me vai ordenando com a mão direita que me mova ligeiramente para um dos lados onde o enquadramento seja mais favorável.
- Agora não te mexas. Olha para a máquina e sorri. Pronto já está; returque o Sr. Cabral enquanto se liberta do túnel de pano preto em que estava mergulhado.
- As fotos são normal ou urgente – Pergunta o diligente retratista.
- Quer meia dúzia ou uma dúzia. Se encomendar uma dúzia oferecemos-lhe uma foto 8x10 cm.
Minha mãe decide-se pela dúzia e pelo modo normal que vai demorar quinze dias, sendo que na próxima semana devemos cá voltar para verificar as provas e escolher a pose do produto final.
O nosso destino último, é um prédio na mesma correnteza desta avenida uns quantos números mais abaixo.
Minha mãe vai trabalhar a casa de Dona Teresa e nestes dias de Agosto a família da casa estará a banhos no litoral.
Subimos ao terceiro andar onde minha tia Felícia (a criada interna) nos abre a porta escancarando também o sorriso com que nos recebe.
Como os patrões não estão em casa, posso ir brincar para o sótão onde os meninos da casa possuem uma colecção de brinquedos, livros, jogos, lápis de cor e uma enorme pista automóvel para carrinhos eléctricos que é a minha perdição.
Minha mãe recomenda-me que não estrague nada sob pena de nunca mais aí voltar.
Estou no paraíso. Para um alentejanito com pouco tempo de Lisboa, cujos brinquedos consistiam num arco, pião e bilas, ter ali à minha mercê toda aquela parafernália de divertimentos, ainda por cima num sótão e só para mim, era assim como estar no céu.
Desde pequeno que gosto de ler, foi ali naquelas águas-furtadas que avidamente consumi toda a colecção do Tim Tim publicada até então, os livros do Príncipe Valente (de longe o meu herói favorito), os Mundo de Aventuras e tantos outros.
Quando tínhamos de voltar no dia seguinte levava-os à socapa para casa, para ler e reler até que o sono me vencesse e logo que acordasse, neles voltar a mergulhar em fantasias de sonhar acordado.
Era assim a vida dum Príncipe Valente do subúrbio em que me transformei. Construi com as minhas mãos uma espada feita de madeira de cabo de vassoura, que embainhava à cintura cirandando pelo bairro à cata de cinderelas para resgatar, não sem nunca derrotar em mortíferos duelos os seus imaginários algozes.
E minha mãe, a cada manhã da minha vida teimava em humilhar-me com aquela coisa de molhar o pente na água da bacia e apartar-me a marrafa.
- Mãe...Mãe, não se aparta a marrafa a um guerreiro. O príncipe Valente não tem marrafa, esbracejava eu durante os sonhos em que me transfigurava no meu personagem favorito.
Aquando do nosso regresso à Foto Cabral para escolher as fotos, o ilustre retratista agarra uma delas e olhando para mim por cima dos óculos, diz: - Se fosse a ti escolhia esta, tens um não sei quê de cavaleiro andante.
Ao mesmo tempo sorriu, piscou-me o olho e num carinhoso afago de cabelo... destruiu-me a marrafa !
13 Comments:
Valente texto. Comovente. Debaixo dessa armadura, continuas a sonhar...
pulanito volta ao seu melhor. Faço minhas as palavras do Carneiro.
B. sales
Dentro de muitos de nós existe esse cavaleiro andante que tão bem soubeste descrever.
Gostei que o senhor Cabral te destrui-se a marrafa.
É um final à melhor maneira do Pulanito.
Parabéns. este texto revela o menino que exite dentro de ti.
Nunca deixes de sonhar
Leonor
Lembro-me desse sotão na avenida da igreja e foi lá que me ofereçeram um fato de Judo que me fez precorrer 17 anos nessa modalidade ...curioso, também é o facto de simples actos (como pousar para as fotos) nos deixam ficar suadades da vida. o que é que nos preocupa agora?
Primo Luis Fernando
Será que o fotógrafo conhecia o conhecido soneto de Antero de quental :
"Sonho que sou um cavaleiro andante,
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!
Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espadá já, rota a armadura ...
E eis que subito o avisto, fulgurante
na sua pompa e aérea formosura!
Com grandes golpes bato à porta e brado :
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado ...
Abri-vos portas d'oiro, ante meus ais!
Abrem-se portas d'oiro, com fragor ...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!
Um abraço
José Mestre
Grande José Mestre,
sempre em cima do acontecimento e com a oportunidade que te define.
Por de trás daquele paladino que calcorreia a avenida com passos de veludo, existe uma alma sensivel que por vezes nos presenteia com a subtileza do momento.
Grande José Mestre,
sempre em cima do acontecimento e com a oportunidade que te define.
Por de trás daquele paladino que calcorreia a avenida com passos de veludo, existe uma alma sensivel que por vezes nos presenteia com a subtileza do momento.
Pulanito,
tu tens essa capacidade de emocionar os teus leitores.
Adorei o post.
Sandra Esteves.
costumo por aqui passar sem nunca comentar.
Desta vez não posso deixar de o fazer.
Parabéns pelo texto que nos dá a ler. É sem sombra de dúvida uma bela história que teve a generosidade de partilhar com quem por aqui passa.
Abraço
Lembro-me de me contares que irias escrever sobre este episódio. Lembro-me de irmos tirar fotos para a carta de condução e do processo não ter demorado mais de 10 minutos, e de tu me desvendares o outro lado, o outrora, que me parece tão mágico. Gosto tanto quando me embalas nestas tuas histórias de infância. Tenho uma certa pena de viver nesta época, onde tudo me aparece feito, e o valor que atribuímos às coisas é tão efémero e frágil. Ser criança sempre...
Tiro o chapéu e aplaudo de pé o comentário de Catarina Mira. Mas qual é a filha ou o filho que não sente orgulho, que não sente uma certa, uma legítima vaidade por ter um pai assim?! Mas qual é o pai que não sente orgulho, que não sente uma certa, uma legítima vaidade por ter uma filha ou um filho assim.
Um abraço
José Mestre
Fiquei comovida com o texto, porque também eu tirei fotos, na "foto Cabral" , também subi essas escadas e a memória que tenho dessa altura deixa-me tão nostalgica, mas triste não sei porquê...
Beijinhos da prima Catarina
Gostei das reminiscências narradas por você. Como sou um bocado mais velho, posso lhe segredar que a primeira história da Prínicipe Valente que li foi pelos idos de 1945, no Globo Juvenil tri-semanal. No exemplar de terça-feira vinha o Brick Bradford, na quinta o Bronco Piller (ou Red Rider) e no sábado o nosso Príncipe Valente, tudo em cores. Isto aqui no Brasil.
Um grande abraço.
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