sexta-feira, julho 06, 2012

Retrato do Artista Enquanto Andarilho da Palavra.

Prefácio do livro O Fio de Ariadne que fiz para o meu amigo Vitor Encarnação. Resolvi aqui partilhá-lo, porque quero que conheçam este escultor de palavras, este filigranista das ideias que trata o verbo por tu e nos faz sonhar nas asas da sua poesia. Recomendo vivamente.


 Vítor Encarnação

Não sei se é de bilros, de agulha ou mesmo de arraiolos, o rendilhado das palavras de Vitor Encarnação. Sei, isso sim, que é na complexa filigrana da sua escrita que experimento raras sensações que me obrigam a ler e a reler as crónicas a que há muito me habituou.

Ainda agora, para a elaboração deste pequeno prefácio, voltei a estremecer com as certeiras palavras deste escriba que tem num certo Alentejo o seu território de afeição, e que, como poucos, retrata duma forma única e ao mesmo tempo visceral.

Descobri este artesão da palavra já lá vão uns anos. Na altura partilhávamos a mesma página no extinto jornal O Campo, onde eu habitava o rés-do-chão e o Vitor o primeiro andar da dita página, assim numa espécie de vizinhança de raminho de salsa em forma de letra. Nas crónicas feitas “prosemas” que assina, descobre o leitor, personagens, lugares e costumes que fazem parte do espólio emocional transtagano que este imortaliza no papel dando-lhe vida e dignidade. Uma certa e vertical dignidade que só se encontra na alma do povo a que ambos pertencemos.

Numa das últimas vezes que partilhámos vinho, pão e paleio, o Vitor confidenciou-me que é durante o Inverno, no remanso do lar, no aconchego do lume, no crepitar da esteva ou na dança hipnótica do fogo que se sente mais propenso para esta coisa de contar vidas, juntando-as em forma de letra numa alquimia, cujo segredo se nos revela quando ousamos na sua leitura mergulhar.

É nos rostos sulcados pelo tempo, nas mãos trémulas feitas relatos de vida, na solidão das almas que habitam pessoas e lugares ou na dor calada dos que mais sofrem, que este escriba materializa em palavras aquilo que o seu génio lhe dita. Neste O Fio de Ariadne, dá-nos a provar em doses suaves o mel dessa flor chamada melancolia, esse estado da alma alentejana que o autor tão bem sabe
 e que partilha connosco em cada uma das crónicas agora apresentadas.

Capa do livro - O Fio de Ariadne

Imagino o Vitor Encarnação a subir ao ponto mais alto de Ourique, local onde se abarca toda a lonjura que o seu olhar pode alcançar, talvez até ás cercanias de Beja, mas quando se volta para sul, consegue almejar terras algarvias onde o mar quase bate no sopé da serra que divide uma da outra região. De quando em vez, deixa fugir a caneta (que teima em afirmar ser uma mulher com sangue de tinta!) para as terras mais a sul, e de lá vem crónica com sabor a mar, marés e mareantes.

 Mas é daqui, do alto da sua imaginação, que pudemos vislumbrar o mundo “Vitoriano” que o autor nos convida a desbravar. Dos muitos dos seus trabalhos que me passaram em frente aos olhos, noto-lhe o especial carinho pelos mais velhos, daqueles com vidas lavradas nas rugas do rosto, gente anónima, mais das vezes vestida de preto e para sempre, gente que espreita a vida pela fresta do postigo, gente que calcorreia só e em silêncio a míngua de sombra onde já mal cabe o seu corpo em dia de latejo solar.

Destas e doutras vidas que no peito carrega, faz o poeta o seu percurso, imortalizando em palavras aquilo que o fotógrafo congela em momento de inspiração. No seu cardápio de escritos cabem ainda e sobretudo os homens e as mulheres desta terra; os amores e desamores daqueles que mergulharam na volúpia da vertigem; cabem campos e lonjuras; o verde esmeralda do ondulante das searas; a alva cal das casas rasas das aldeias perdidas no tempo e no silêncio; cabem ribeiras a transbordar em noites de vendaval; cabe o vinho e mais o pão, mas cabe acima de tudo, todo um Alentejo de emoções que parecem haver sido esculpidas a maceta e a cinzel. Mas não: saíram da caneta deste artífice do verbo que teima em dizer-nos que esta, é uma mulher com sangue de tinta.

Napoleão Mira 
31 de Março de 2011

Escrito por pulanito @ julho 06, 2012   1 comentários

1 Comments:

At 11:12 da tarde, Anonymous Manuel António Domingos said...

Napoleão estou a ficar hipnotizado pela forma como transformas conjuntos de letra em palavras. Palavras, que são verdadeiros mísseis a atingir o coração, que faz de tinteiro para a escrita do Victor Encarnação!!!

 

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