Do(y)na de Si Mesma.
Doyna
Gosto de pequenos portugais, como aquele criado por mestre José Franco na localidade de Sobreiro perto de Mafra. Gosto do Portugal dos Pequeninos em Coimbra e de outras miniaturas que me remetem para um tempo de brincadeiras sem brinquedos senão os criados pelas mãos da inocência que existe dentro de cada petiz. Provavelmente e por via desse tempo, continuei a cultivar o gosto por locais exíguos como a Ginginha do Rossio, a Tendinha na mesma praça, a Baiúca em Alfama e outras tantas minúsculas tascas duma Lisboa distante.
Há cerca de dois anos descobri mais um destes aconchegantes estabelecimentos que parecem feitos à minha medida. Chama-se Papa Migas e fica em Beja, na Praceta da Calçada, ali para os lados do hospital. Tem apenas quatro mesas e uma lotação sentada para doze pessoas. Bem mais pequeno que a minha sala de jantar! Atrás do balcão está uma mulher de olhar penetrante e sorriso franco que nos recebe com um perfeito sotaque alentejano só que, temperado com uma pronúncia vinda de longe... de muito longe, mais precisamente de Krasnoylsk, uma pequena cidade ucraniana junto à fronteira com a Moldávia.
Procurei desde logo junto dos companheiros que aí me levaram encontrar a ponta do novelo duma história que desde logo pressenti vir a interessar-me. Entabulei conversa com ela. Diz-me chamar-se Doyna e ter vindo inicialmente para Portugal em gozo de férias. Como estas eram longas resolveu trabalhar umas semanas; ganhou-lhe o gosto e por cá ficou. Nisto passaram mais de dez anos!
Não começou logo por ter o seu próprio espaço. Trabalhou noutros estabelecimentos onde aprendeu a arte de caldear sonho com futuro, a rimar beijo com poejo e a misturar pão com coração. Desta alquimia e com o dedo natural que tem para o tempêro da vida, nasceu uma cozinheira de corpo inteiro; uma mulher que faz da profecia dos sabores um património que sabe também lhe pertencer por direito próprio. As iguarias da cozinha transtagana não têm para si qualquer segredo.
Das vezes que aí tenho ido, mais delas tenho comido bem, nas outras, divinalmente. O verão passado mandou vir para junto de si os seus três rebentos, Helena de 22 anos, Svetlana de 15 e Elias de 13. Agora, com a sua prole reunida, ainda mais vontade tem de se atirar à labuta, ainda por cima, agora que multiplicou por três os braços de trabalho.
Com o passar dos tempos, Doyna foi-me confidenciando sonhos e desejos. Um deles quase... quase materializado, era o de construir uma casa no seu quinhão natal (onde é que eu já ouvi isto!) Já não falta muito para que esta mãe coragem possa meter chave à porta do seu concretizado sonho que lhe custou tempo e suor, e assim dar por bem empregues os anos a fio que passou sem descansar. Sim, porque este Papa Migas só não está aberto quando Doyna está a dormir, de resto tem as portas escancaradas todos os dias do ano incluindo Natal e Ano Novo.
No outro dia dei com ela meio pesarosa. Não nos atirava a sua mortífera mirada cravando no nosso o seu olhar e, dos habituais gracejos, nem sinal! Dizia-se triste, arrastava-se por ali como quem carregava um fardo que só a si dissesse respeito . À pergunta se algo se passava com os seus filhos, respondeu negativamente, mas não tardou em deixar cair a máscara deixando rolar na face um par de teimosas lágrimas. — Foi a minha mãe que morreu há menos de uma hora — confidenciou-nos a proprietária do Papa Migas enquanto levantava as mesas entretanto desocupadas, carregando dor, pratos e pranto num exercício de coragem que me impressionou e que me levaram a escrever esta crónica. Até porque fechar a porta e ir para casa chorar o seu pesar, era algo que estava fora de questão.
PS: No entretanto que mediou a publicação desta crónica, a Doyna abriu um outro espaço em Beja. O restaurante Alcoforado, onde por sinal começou a trabalhar quando chegou a Portugal.
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