Dia 6. De Palos de la Frontera a Lagos – Dia de Regata
Se a ideia era andar à procura de sensações fortes, pois estas quase vinte e quatro horas, foram (ainda estão a ser!) absolutamente “adrenaliticas”.
O barco em que viajamos, o Gémeos do Mar, está neste momento de pantanas, ou seja; parece que passou por aqui um terramoto, tal foi a força das ondas nas últimas vinte horas. Mas comecemos pelo principio, porque há muita coisa para contar.
Saímos de Mazagón/Palos pelas onze e trinta de ontem 09/07. As previsões de vento, sempre importantes para quem anda à vela, apontavam para ventos de noroeste até às dezoito horas, depois virando a sudoeste ainda com menos nós o que fazia subentender uma regata calminha, talvez com um pouco de emoção aqui ou ali.
Mal saímos a barra, demos de imediato conta de que as previsões que nos haviam chegada eram tudo menos aquelas que estávamos a sentir no mar.
Esta é a minha primeira regata. Logo: a visão ingénua de quem vê isto com os primeiros olhos. Não me debruçarei sobre pormenores técnicos sob pena de cair no ridículo, mas sim relatar o que os olhos vêm e o que o coração pressente.
O quadro é animador. A tripulação está entusiasmada e preparada para as múltiplas tarefas que se avizinham. Amadeu dá as primeiras ordens para se fazer uma mudança de direção das velas, que em linguagem marítima se diz: mudar de bordo.
É preciso afrouxar os cabos. O vento batendo na vela solta provoca um ruído ensurdecedor. Nesta manobra existe toda uma sincronia para que surta na perfeição.
Amadeu dá a voz de comando! João António e António Baião esperam pelo momento para enrolar o cabo que deverá prender a vela do lado contrário onde está agora. Roldanas chiam, os cabos guincham de tanto serem esticados e Filipe no silêncio que o caracteriza, roda a toda a força o mulinete de modo a caçar a vela. É uma operação que exige rapidez, rigor e muita sincronia.
Ao mudar de bordo mudamos de direção. É esta a estratégia do nosso comandante, que aposta tudo em navegar para fora, onde podemos conseguir velocidades perto dos oito nós . Ao efetuar esta manobra, conseguiremos contornar a fraca velocidade que se faz sentir perto da costa e apesar de que, a “milhagem” a efetuar seja maior e se os deuses e os ventos nos ajudarem poderemos aquando da chegada a Lagos estar na frente dos outros concorrentes.
Nesta regata existem duas classes: IRC e OPEN, que é onde nós corremos. Os barcos IRC estão obrigados a outros parâmetros que não os do Gémeos do Mar e, regra geral, chegam em primeiro lugar, o que quer dizer, que são doutro campeonato. O nosso: resume-se a obter a melhor qualificação na classe OPEN, o que já não é nada mau.
Eu numa rara foto e o João António ao leme, Baião a braços com a má disposição e Amadeu aos gritos na proa. Não se vê tudo isto, mas era o que estava a acontecer.
A terra foi desaparecendo no horizonte à medida que milhentos castelos de ondas se formavam; era agora este, o nosso território de navegação.
A embarcação galgava onda atrás de onda em inclinações de arrepiar, chegando mesmo aos 40º, o que, para quem está habituado a isto, não consegue fazer outra coisa senão tentar permanecer sentado ou deitado, imaginem agora um principiante como eu, com mais medo da água que do fogo. Confesso que passei esta noite por uma experiência que não sei se repetirei, mas que foi seguramente marcante para toda a minha vida.
Quando a noite veio, trouxe com ela mais vento e, a acompanhar, um frio gélido que incomodava de sobremaneira quem estava lá fora a tomar conta das operações.
Estar no poço da embarcação nesta situação, é só para gente forjada na espuma das águas; gente que trata por tu o mar; gente que o respeita, mas que também o desafia.
Movimentarmo-nos com uma inclinação a rondar os 40º, é simplesmente uma aventura que pode trazer consequências graves a quem não siga os preceitos de marinhagem.
O Filipe em pleno contorcionismo equilibrista tentando beber o seu batido. Tarefa quase impossível!
André voando contra a mobilía, mas mesmo assim sorrindo para a foto. Até parecia que estávamos numa câmara sem gravidade.
André voando contra a mobilía, mas mesmo assim sorrindo para a foto. Até parecia que estávamos numa câmara sem gravidade.
O António Baião, lá por essa meia-noite teve saudades do Gregório e resolveu chamar por ele, deixando o chão do navio como uma deslizante gosma que durou até de manhã. Quando saía da casa de banho deu um “gandeão” que o atirou contra a mesa de navegação onde estava o Filipe que não pôde fazer mais nada que levar com aqueles noventa quilos de carne, a uns 50 Km por hora (presumo eu, que assisti à cena!). Até a mim me doeu!
Cá está o Tó Baião, antes do seu (quase) acidente. O resto foi demasiado rápido para poder fotografar.
O vento assobiava lá fora, o Gémeos do Mar transpunha onda atrás de onda, e de quando em vez, em vez de a galgar, embatia nela de chapão provocando um estrondo assustador que percorria toda a embarcação num troar assustador.
Aquando das mudanças de bordo, tudo o que se encontrava dentro de armários, paneiros, gavetas ou alçapões revoltava-se e rebolava para o lado contrário. É certo que não se conseguia fechar tudo, e logo, uma gaveta ou armário se abria explanando no chão todo o seu conteúdo. E o vento continuava a soprar em forte e estas seis almas penadas, entregues ao seu destino na profunda escuridão do mar alto.
Quando a aurora rompeu, quase não houve tempo para presenciar essa espetacular mutação. Um novo borde, uma nova tarefa sob um inclinação que nem lembra nem ao melhor dos equilibristas. E tudo continuava ao “gandeão” dentro da embarcação, não permitindo qualquer movimentação à tripulação sem correr risco de tombar escada abaixo, de escorregar no piso molhado ou mesmo ter de se gritar “ homem ao mar”.
A bem dizer passamos ao plano inclinado desde que a regata começou, o que faz, com que nós continuemos com o barco nas pernas, embora tenhamos atracado há várias horas.
Desculpa lá Amadeu, mas tu mereces esta foto. És aqui, o símbolo da manhã que desponta. Depois, gosto muito da foto e tinha de a publicar, embora este post esteja cheio de fotos tuas.
O Tó Baião já recuperado de uma noite aziaga.
Quando a manhã clareou e o sol vindo lá dos confins do planeta se fez anunciar, o vento de repente amainou, foi então que tivemos o nosso momento gratificante: a companhia dos golfinhos.O Tó Baião já recuperado de uma noite aziaga.
Em silêncio apreciámos a comitiva de boas vindas destes mamíferos marinhos, que nos brindaram com a sua saltitante presença até à entrada da barra de Lagos, altura em que nos disseram adeus e, num último mergulho regressaram ao seu habitat natural.
Não sei em que posição ficámos. Só sei que ficámos em primeiro no ranking da amizade, altura esta e que aproveito em nome de todos os tripulantes, para agradecer ao Amadeu Henriques a possibilidade que nos concedeu de marcarmos “a desejo de voltar”, a oportunidade que nos concedeu.
Não sei se consegui traduzir fielmente a incumbência a que estava destinado. Procurei sobretudo relatar esta semana marítima, pelo ângulo de um medroso ingénuo que dirá que sim de novo, se para tal voltar a ser convidado.
11 Comments:
Vitor Encarnação,
"Caro amigo, será impertinência sentir inveja?
Napoleão, já sei que foram 24hrs muito más mas que te portaste como um verdadeiro marinheiro. Obrigada por partilhares esta aventura connosco. Isaura
Natália Duarte,
"Na próxima ou levam a familia ou vamos amuar pelo menos 2 semanas, e depois quero ver, bjs and welcome back"
Parabéns aos mareantes!
Isso de aventuras no mar alto dá-me "almareios de cabeça como se fossem de estômago...e depois lá vem a gosma.
Boa prosa ,como sempre.
E aqui está a contraprova "melhor julgar que experimentar":-)
Vai um abraço e um "Vivó sequeiro alentejano"
jm
Grandes Marinheiros.
Boa Nap !
O que eu gostava disso.
Vamos P'a Palos ?
Abs.
Iscas
Isto está porreiro. Transmite uma mensagem cheia de boas imagens. É certo que as existentes são ótimas mas, as imagens da escrita, são de sentir inveja. Parabêns.
Zé Neves
Parabéns, Sr. Napoleão!
Gostei muito deste "Diário de bordo", tal como havia gostado do "Diário da volta". Do mar ou de terra firme, tem-nos regalado os olhos e a alma através de palavras e de imagens estonteantes.
Desejo-lhe muitas felicidades!
O meu obrigada por partilhar connosco a sua magnifica escrita.
MT
Pulanito,
Tu escreves de caraças. Tens uma escrita que me cativa e me deixa agarrada aos teus posts que tenho de ler e reler vezes sem conta.
Já vasculhei no material mais antigo e na verdade encontrei verdadeiras pérolas que já tenho copiado e enviado a amigos meus.
Sei que o teu filho é um excelente escritor de canções e um músico de raro talento, mas de certeza que herdou de ti o ADN para esta coisa que é colocar as imagens em palavras e que tu, na minha modesta opinião, fazes tão bem como os melhores.
Sinceros Parabéns.
PS: Também já tenho o teu livro que adquiri aqui em Lisboa na FNAC. Quando for possivel gostava que mo autografasses.
Madalena Cortez
Amadeu Henriques,
Se todos os dias do resto da minha vida fossem passados com a alegria e camaradagem que passei nesta semana, vos garanto que talvez fosse uma das pessoas mais felizes de sempre.
Um relato cheio de emoção, parabéns.
Buja
Gostei das fotografias e do relato.
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