Pardal
Sempre que rebobino o filme da minha vida e faço paragem no apeadeiro da infância, regresso invariavelmente a Entradas. Revejo daqui, do cume da memória as ruas desertas em tarde de canícula alentejana. Impera no ar o silêncio dos recolhidos que na sofreguidão das casas dormem o vespertino sono dos justos, que por aqui se apelida de folga.
De repente, vindo a correr dos lados da igreja matriz em direção à Rua do Paço, debaixo duma absurda soalheira, vislumbro uma criança que se aproxima de minha casa. É um menino de olhos azuis, de um azul imenso como se coubessem dentro deles os mares que nunca viu. Traja calções de peitilho, faltando-lhe um botão do lado esquerdo, o que faz com que a alça do mesmo esvoace à velocidade com que corre.
Entreabre o postigo e grita para dentro de casa.
- Vizinha Custódia, posso brincar com o seu Napoleão?
Lá de dentro à sombra do quintal onde espero que o sol amaine, ouço a voz do Pardal e regozijo-me por ter companhia para a brincadeira.
Luís José Costa Batista, mais conhecido por Pardal, é meu amigo desde que nos conhecemos, já lá vão mais de cinquenta anos, mas regressemos a essa tarde de Verão; de um Verão alentejano que mais parece que o inferno comparado com isto é brincadeira de moço pequeno.
Quando o Pardal aparece rejubilo de alegria e pergunto-lhe: - Trouxeste o teu cágado?
Diz-me que não. Respondo-lhe que não faz mal, que brincamos com o meu.
Uma das nossas brincadeiras consistia em fazer carruagens com latas de conserva e rodas de botão seguras por arame que, depois de carregadas de terra, eram atreladas umas ás outras e à carapaça do animal em buraco antecipadamente perfurado a prego e martelo (hoje seria incapaz duma atrocidade destas!), sendo que a nossa entretenga era ver onde o pobre bicho conseguia chegar. Caso tivéssemos dois ou mais cágados, pois aí, já havia feroz competição.
Por lá continuávamos com esta cruel brincadeira, ou com outra qualquer que inventássemos, que como se pode imaginar, brinquedos eram todos os que a nossa imaginação pudesse alcançar já que dinheiro para os comprar, era coisa que não havia.
Apesar dos pesares, foi este o tempo mais feliz da minha vida e o Pardal contribuiu largamente para esses momentos de felicidade e inocência.
No dia anterior à minha partida para a grande cidade, fumámos debaixo do pontão uma cigarrada de “Definitivos” que ele havia surripiado numa venda da vila.
Selámos a nossa despedida com um emotivo abraço e uma última cigarrada. Depois os anos passaram e só nos reencontrámos muitos anos depois.
No entrementes o Pardal foi carpinteiro (e ainda é!), taberneiro, “emigreiro”, politiqueiro e todos os outros “eiros” que se escondem atrás das múltiplas tarefas profissionais que desempenhou.
Depois do nosso reencontro e já homens de corpo inteiro voltámos a conviver e a celebrar esta amizade que para mim é uma irmandade de que a altiva torre sineira da nossa terra é testemunha privilegiada.
Certo dia desafiei-o para uma volta de bicicleta. Percorremos estradas, vilas e aldeias do nosso território, regressando a Entradas com cerca de noventa quilómetros nas pernas, cansados mas felizes. Nos seus olhos de azul infinito e durante o percurso ciclístico, lembrei-me do nosso enquanto gente e revi neles muitos dos episódios dessa infância partilhada.
Hoje, voltei sozinho a fazer esse mesmo percurso sentindo a falta do Pardal como companhia. Como não o tinha presente resolvi mentalmente escrever esta pequena crónica para homenagear este homem de convicções inabaláveis que faz o favor de retribuir a amizade que lhe dedico.
Da próxima vez que for à ribeira, vou à cata de um cágado para lhe oferecer. Não sei bem a que propósito, mas, parece-me bem!
Publicado na Revista 30 Dias de Junho 2011
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