No Silêncio da Estrada
Apesar dos céus carregarem de nuvens anunciando aguaceiros, lá me fiz finalmente à estrada no passado Sábado 08 05.
Já não sabia o que era esta sensação desde há alguns meses. Umas vezes por preguiça, outras por via do mau tempo, outras ainda, por afazeres ligados à publicação do AO SUL, não me permitiram desfrutar dessa sensação única que é bicicletar pelas estradas alentejanas usufruindo da paz, do silêncio, da liberdade e sobretudo da paisagem desta terra que é minha por gratidão, mas sobretudo por devoção.
Montado na minha varanda sobre rodas, local privilegiado por onde filtro, saboreio e absorvo tudo o que me rodeia, marcam este meu regresso às lides pedalantes.
Sinto-me bem. O ritmo compassado do meu pedalar, fazem-me lembrar que as minhas pernas são os alcatruzes desta imaginária nora que é o serpentear da estrada onde desaguam muitas das sensações que no silêncio da solidão vou experimentando.
Os campos, até há pouco demorados tapetes verdes debruados a amarelo, branco ou violeta, são agora invadidos pelo vermelho das papoilas que anunciam o fim da floração espontânea que acontece a cada ano que passa sempre que no calendário for tempo de Primavera.
Agora, em pleno Maio, o desfalecido verde há-de dar lugar ao doirado dos trigais que sendo paleta de uma só cor, nos devolverá a imensidão e a vastidão da terra mãe.
É nisto que penso à passagem por Ervidel. Indeciso se devo seguir até Ferreira do Alentejo, olho o relógio e contabilizo o tempo, avalio a condição física e de modo a chegar a casa a horas de almoço, decido-me pelo caminho de Santa Vitória, depois Penedo Gordo com regresso pelo IP2, coisa que quando chegar a Entradas há-de dar perto dos noventa quilómetros.
Lá pelo quilómetro cinquenta e cinco aparecem as primeiras dores musculares, coisa que combato desviando pensamento para paragens mais parcimoniosas, e volto a pensar na liberdade, no quanto eu poderia ser feliz percorrendo o mundo em duas rodas. Destes pensamentos faço os meus devaneios, e com eles, galgo quilómetros atrás de quilómetros. À passagem por Albernôa ainda volto para a aldeia para fazer uma paragem à do Lexivia e beber um derradeiro café que me desperte para os doze quilómetro finais, que para dizer a verdade já me vão fazendo mossa nas pernas, ombros e “nalgas”.
Olho de novo o relógio, e penso que esta paragem me vai atrasar para o almoço de família e não quero fazer ninguém esperar. Já dentro da simpática aldeia dou meia volta e decido-me a enfrentar o vento frontal e mais estes penosos derradeiros doze quilómetros que me hão-de conduzir a Entradas.
Volto a passear os olhos pela paisagem envolvente, mas agora, já sem o silêncio que até aqui me fez companhia. O IP2 é uma artéria com bastante tráfego e apesar de nela não se poder bicicletar, tanto eu como os demais ciclistas da zona arriscamos viajar por aqui, até porque tem uma excelente escapatória que permite ao ciclista pedalar em segurança.
Já com a torre sineira da igreja de Santiago Maior no horizonte, esse farol eclesiástico plantado no coração da planície, penso no bom que foi regressar à estrada, à solidão dos caminhos, ao reencontro com um eu que não via há muito tempo, mas acima de tudo por usufruir dum tempo de liberdade, que de repente e se tivesse forma se me afigurou redonda, como uma pomba, branca de imaculada e a estrada um longo e serpenteante véu.
Belisco-me e penso!
Será que estou aqui, ou estarei no céu!
Publicado na Revisto 30 Dias de Maio de 2010
2 Comments:
Juliana Reis,
antes que se me vá a emoção desta minha última leitura....uma das mais belos (e belo não será a palavra mais adequada) momentos destes últimos tempos...acabei de ler Ao Sul esta manhã...devorei-o, transportei-me e deixei-me guiar por esse Portugal Virtual como se se tratassem de memórias projectadas...os paladares, os cheiros, as paisagens e personagens (lindas!!)...como se já estivesse onde gostaria de estar...gostei particularmente do admirável mundo novo, do tempo que o tempo tem, gosto de gostar, amanheceres...obrigada pelas horas que pude disfrutar na companhia deste Sul e que a vida seja assim simplesmente "mais campestre, mais espaço e no fundo mais mundo"...
Carlos Salgueiro,
Boa viagem amigo.
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