Julio Prega Saltos - A Angustia do Guarda-Redes no Momento do Penalty
No balneário imperava o cheiro a cânfora com que os futebolistas amadores da equipa do Príncipe Futebol Clube massajavam as pernas. Quando esta era demais – e havia jogadores que derramavam sobre a pele quantidades paquidérmicas deste aquecedor muscular – penetrava no nariz e nos olhos como se fossem milhões de finíssimas agulhas causando um incómodo a que os alarves futebolistas chamavam de mariquices, dizendo que o futebol é para homens de barba rija e não para “meninas sensíveis”, como aparentava ser o seu caso.
O seu lugar na equipa era de guarda-redes suplente. Era tão suplente, tão suplente que nunca tinha jogado na posição para que se sentia vocacionado e com que sonhava acordado vezes sem conta.
Imaginava-se a saltar mais alto que defesas e atacantes e, com o joelho em quilha, galgar às alturas de forma imperial agarrando o esférico, cortando o iminente perigo, serenando os ânimos dos companheiros e despoletando na assistência uma espontânea salva de palmas a que correspondia com um sorriso de agradecimento. Imaginava-se a atirar-se quase inconscientemente aos pés dos avançados em mergulhos de cortar a respiração, salvando aquilo que parecia ser um golo iminente. Sonhava com os seus companheiros a darem-lhe palmadas nas costas e a agradecerem-lhe a coragem demonstrada.
Mas isto era o nosso herói a sonhar, porque o lugar de guarda-redes titular já tinha dono. Pertencia ao Fitas, esse magistral acrobata, que tanto saltava, como se arrojava perigosamente aos pés dos avançados roubando-lhe o esférico de forma surpreendente.
Entre os postes era um semi-deus, qual aranha mais rápida que a própria sombra, defendendo o indefensável e granjeando nos colegas e adversários a admiração que só os melhores merecem. O Fitas só falhava num particular: comunicação com os defesas. Muitas vezes quando gritava «Deixa!», o defesa não se fazia à bola e era vê-la entrar de mansinho a um dos cantos do seu território de afeição a que o comum dos mortais chama de: baliza!
A posição de guarda-redes requer que o dono do lugar tenha “planta”, perfil, coragem, arrojo e alguma dose de loucura. O Fitas possuía todas essas e mais algumas!
Era o Vítor Damas da FNAT, era o Costa Pereira da plebe, era o Zé Gato do mulherio, enfim, era um génio, e ele… ele, era o seu substituto!
Certo dia foram jogar ao campo três do Estádio da Luz contra o Estoril-Sol, uma equipa da linha de Cascais recheada de praticantes de fino recorte que lideravam o campeonato hoteleiro da altura, e onde pontuavam alguns jogadores do Estoril Praia que tratavam a bola com tal intimidade que até se lhe afigurava que dormissem com ela.
O Mister começou a dar a táctica e a distribuir as camisolas dizendo que deviam marcar homem a homem e dar-lhes no osso caso não conseguissem por meios legais roubar-lhes a redondinha.
Nessa altura ainda não se falava em meter autocarros em frente à baliza, mas a coisa ia dar no mesmo, até porque perder por poucos com aquela “equipa maravilha” era quase considerado uma vitória.
Para dizer a verdade, a prelecção do mentor estratega, mais conhecido por treinador, a ele não lhe dizia respeito, porque a sua táctica já a sabia de cor e salteado: consistia basicamente em equipar-se com os velhos calções almofadados, vestir a camisola doze e sentar-se no banco de suplentes até ao intervalo, regressar aos balneários durante o mesmo, e depois, aguentar firme mais quarenta e cinco minutos até que a cabazada estivesse concluída.
Luvas, joelheiras e cotoveleiras, só existia um par de cada e estavam naturalmente atribuídas ao guarda-redes titular, que em caso de lesão ou coisa que o valha, as devia de transferir para o seu substituto, um pouco como se faz com a braçadeira de capitão.
Estava o nosso protagonista muito entretido com os seus pensamentos quando o Mister Victor lhe diz para se equipar com a camisola número um, já que iria ser naquela importante partida o guarda-redes titular, porque o Fitas havia ido a um funeral dum familiar.
Não sei se vos diga, se vos conte; apossou-se-lhe de repente uma espécie de paralisia que não o deixava balbuciar palavra, quanto mais arrojar-se aos pés daqueles verdadeiros mágicos da bola.
Ainda foi espreitar lá fora, na esperança de que aquilo fosse uma brincadeira, mas do Fitas nem novas nem achadas, tinha-se evaporado lá para as bandas do cemitério.
Chamou o treinador de parte e disse-lhe que se calhar ele não seria a melhor opção para tão importante partida. Lembrou-o que para além da falta de jeito, de treino, de posição, de perfil e sei lá mais quantas qualidades que não possuía, recordou-lhe também que era míope com várias dioptrias e até na paragem dos transportes quando lhe perguntavam para onde é que o autocarro que se aproximava ia, ele respondia questionando: «Qual autocarro?» Por aqui já se pode ver que o pobre podia não ter nenhuma das faculdades que o lugar exigia mas, não conseguir ver a bola, tornava a sua tarefa mais do que difícil: absurda.
«Isso agora não interessa nada. Vais lá para dentro e dás o teu melhor como os outros, e agora ala que já estás atrasado» – vociferou o treinador, dando-lhe um “calduço” no pescoço.
Como o que tem que ser tem muita força, lá entrou em campo como um condenado que sobe ao cadafalso. Nessa tarde, todos os seus sonhos cairiam por terra, espalhados na gravilha daquele pelado. Seria motivo de chacota que perduraria no tempo e contra isso nada poderia fazer!
Quando chegou à zona da baliza, olhou para ela assim como um boi quando olha para um palácio. A estupefacção era tal, que ficou largos minutos de boca aberta. De repente, achou que se deveriam ter enganado nas medidas: aquilo não era uma baliza, era uma gaiola para dinossáurios ou coisa que o valha.
Despertou desta letargia com os gritos dos companheiros que lhe pediam concentração e mais o apito do árbitro que entretanto havia dado início à carnificina “futebolesca” que se avizinhava.
Júlio – O Prega Saltos, assim o haviam alcunhado jocosamente os seus companheiros de canelada, não via literalmente um boi – era pelo som da aproximação da cavalaria que sabia que a bola rondava o território que lhe tinha sido confiado.
Ainda não haviam passado três minutos quando o Prega Saltos pressentiu uma grande molhada junto ao seu perímetro de jurisdição. Como não vislumbrava nada, esbracejava de forma espalhafatosa tentando segurar alguma forma redonda que se assemelhasse a uma bola.
Nisto, acontece o primeiro golo, que na verdadeira acepção da palavra, o nosso protagonista não viu como se desenrolou, apenas sentiu a forte zunida dum objecto arredondado passar-lhe junto ao ouvido.
Aos protestos dos defesas retorquia com um: «Se és assim tão bom, vem para aqui tu para ver se fazes melhor!»
Ao minuto dezoito, Prega Saltos já havia ido ao fundo do galinheiro apanhar três frangos, e com o decorrer da partida, a contagem foi-se avolumando, ameaçando mesmo um score de dois dígitos, o que seria uma verdadeira humilhação.
Quando a partida já ia para lá dos dois terços, um contra-ataque fulminante dos do Príncipe Futebol Clube, conseguiram o tento de honra – numa jogada que estes ainda estarão a pensar como a terão conseguido – e o resultado passou para 9-1.
«Força Príncipe, vamos ao empate!» gritavam das bancadas os três ou quatro incondicionais apoiantes do Príncipe F.C.
Com o golo marcado, a moral foi-se elevando e o nível da sarrafada subindo até que, dentro da grande área, o defesa central do Príncipe F.C., ante a iminência do resultado chegar aos dois dígitos, ceifou as pernas do avançado contrário que, num grito lancinante, deu a entender à maralha assistente a ao trio arbitral a violência a que tinha sido sujeito.
Só restou ao homem de negro mostrar o vermelho directo ao infractor e apontar a marca dos onze metros, ou seja, aquele anel pintado a cal de onde se pontapeavam as grandes penalidades.
Prega Saltos com a sua caleidoscópica visão mal conseguia vislumbrar a confusão que se instalara, mas uma coisa ele sabia: tinha chegado a sua hora!
Encostou a parte de trás da bota direita a um dos postes e em passos calculados mediu o comprimento da baliza. Quase chegou cansado ao outro poste, tal era a distância que se lhe afigurava.
Na verdade, depois de se instalar a meio da baliza, ali, onze metros à sua frente, conseguia descortinar o seu interlocutor, que reconheceu como o mais perigoso dos jogadores contrários.
Num assomo de valentia decidiu caminhar na sua direcção, e se com a perna esquerda dava passos seguros, com a direita sulcava uma linha recta na gravilha arrastando a pesada bota de travessas.
Prega Saltos chegou perto do seu algoz e olhou-o no fundo dos olhos, uns olhos que pressentia cuspirem fogo na hora do fuzilamento. Mirou-o sem pestanejar e regressou de marcha à ré ao seu posto de guardião sem nunca dele retirar os olhos, deixando no ar uma mensagem de desafio que deixou os seus companheiros embasbacados.
Imperava um estranho silêncio no ar; um silêncio daqueles em que se sabe que qualquer coisa de espectacular está para acontecer. Nisto, Prega Saltos lembrou-se que os míopes semicerrando os olhos conseguiam ver melhor e àquela distância era truque que resultava pela certa.
O marcador de serviço deu três passos atrás, inspirou e bufou o mesmo número de vezes e preparou-se para o remate certeiro.
Prega Saltos voltou a medir mentalmente as distâncias à sua guarda e ambos aguardaram pelo apito fatídico. O silêncio era agora ensurdecedor!
Quando o artilheiro partiu para a bola depois do silvo do apito, o guardião dos Príncipes sentiu-se invadido por uma estranha força e, naquele nanossegundo que conseguiu vislumbrar o lado para onde a bola se dirigia, impelido por forças que jamais julgaria possuir, voou para o canto esquerdo como se fosse um pássaro de fogo e, com a ponta da luva, sobre a linha fatídica, conseguiu desviá-la para canto, não sem antes ter dado com a cabeça no poste, o que fez com que perdesse momentaneamente os sentidos.
Um fotógrafo ocasional conseguiu num raro momento de felicidade e de destreza fotográfica congelar para a posteridade tão glorioso momento.
Os colegas tentavam despertá-lo com tabefes secos em cada uma das faces, mas Prega Saltos a única coisa que fazia era sorrir, pois lá no paraíso onde se encontrava, era adorado pela mole humana que não se cansava de gritar o seu nome, até mesmo Mister Victor, homem que carregava no nome o prenúncio dos ganhadores, o beijou nas faces exultando de alegria e prometendo-lhe doravante a almejada camisola número um.
Estava Júlio a ser carregado em ombros pelos colegas assim à laia dos toureiros em dia de memorável faena, quando sua mãe lhe interrompeu o sono profundo em que habitava e o despertou dizendo: «Acorda filho. Está ali o Fitas, veio entregar-te as luvas, joelheiras e cotoveleiras, porque não pode jogar esta tarde, pois tem de ir ao funeral de um familiar.»
4 Comments:
José Marques,
Ora aqui está mais um belo conto à moda do Pulanito. Gostei!
Fantastico este conto,consigo imaginar-me nele,abraço.....
Para o Carlos Salgueiro,
Pois fica sabendo que foi escrito inspirado na tua visita...Eu sei que te revês dentro deste pelado e na minha imaginação foste tu quem ceifou as pernas ao avançado contrário, mas como não utilizei nomes de jogadores de campo não me pareceu bem que o fizesse...tanto mais que este conto um destes dias habitará num próximo livro...
Abraço
Pulanito
Uma bela estória em jeito autobiográfico,como tudo indica!
Entretanto emergiu à memória uma outra passada com um amigo meu sócio daquele clube de futebol,cujo nome já não me lembro,mas que tem um presidente mafioso.Lá para próximo da ponte do Freixo.
....O Zeca inscreveu-se nas provas de natação do Fluvial,nos 10O metros livres.Vestiu o calção(AZUL) de banho e ao apito mandou-se à água de forma desastrada.
Volvidos poucos segundos a prova parou porque o Zeca se afundava, dado que não sabia nadar.
Logo de seguida,após vomitar uma litrada de água,de olhos esbugalhados queixava-se à Mãe:" porque não me disseram que era preciso aprender a nadar?"...
Se tens avisado a malta tinha promovido um joguito de futebol,com umas redes balizadas com duas imperiais ou duas minis,rodeadas de tremoços.
Oxiclista não tem aparecido porque anda a tentar limpar os túneis que o fcp regulamentou,dando um tiro no pé.Ainda bem!Um tiro no pé dos Andrades da Areosa:" muita beim fêta ".
Haja Saúde
jm
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