A Balada da Terra Plana
Tenho pressa de sair
Quero sentir ao chegar
Vontade de partir
P’ra outro lugar
António Variações
Quero sentir ao chegar
Vontade de partir
P’ra outro lugar
António Variações
Esta coisa de abalar às vezes parte-me o coração. Se há coisa que me custa, é sentir o aproximar da hora de ir embora. O arrumar da mala, as despedidas – mesmo que seja por breves dias – os cheiros, os sons, a corneta do padeiro, as vozes da vizinhança, o chilreio das minhas andorinhas, a família, os amigos, o fogo, o silêncio – sobretudo o silêncio –, e sei lá mais quantas coisas que deixo quando daqui abalo, como se deixasse para trás e entregue ao seu destino um legado de que (por razões que me transcendem) me sinto portador.
Abalada, não é nenhum género musical; mas se o fosse, seria certamente fado, esse destino alentejano que passa por cada um de nós inventar os horizontes que pretende alcançar.
Abalada, não é partida. É despegue, é desmame, é morrer por um território de emoções tão nosso que pensamos que nascemos com ele no peito cravado, como que fazendo parte do nosso código genético.
Na hora da abalada, um homem não chora! Sangra por dentro no silêncio da sua condição e, na pressa de um beijo roubado, despede-se do que mais ama e, sem olhar atrás, segue o seu caminho, esse mesmo caminho que um dia o trará de volta, num regresso que deseja breve e ainda de cá não saiu.
De quando em vez sou assaltado por essa memória de petiz e que me reporta ao dia em que me roubaram à minha mátria. Se há coisas marcantes na minha existência, esse dia é uma delas. Tão marcante, que o trago pendurado nos olhos em forma de janela por onde me assomo e por ela revejo vezes sem fim o penoso caminho que nessa jornada trilhei.
No silêncio e no pó dessa estrada, deixei lágrimas como se fossem pedrinhas estrategicamente dispostas que um dia me haveriam de guiar de volta.
No meu corpo de menino, batia desalmadamente um coração de guerreiro, que de espada de pau à cintura, jurava sanguínea vingança aquando da sua volta.
Regressar um dia e para sempre, era a promessa que a mim mesmo fazia. Enquanto minha mãe me arrastava pela mão, não pressentia a dor de alma que de mim se apossava. A torre sineira da igreja de Santiago Maior foi ficando cada vez mais pequena, até que desapareceu de vez por trás do outeiro, e eu, morri pela primeira vez!
Terá sido nesse trajecto que contraí a doença de que padeço e que, de cada vez que tenho de abalar, sou revisitado por esse terramoto de comoções que comigo vive há mais de quatro décadas.
Mas se abalar é quase trágico, regressar é como reviver, como explodir, como renascer! É uma catadupa de vibrações que se exprimem numa repentina paz interior, pelo marejar dos olhos ou pelo incontrolável tremor da derme, só para mencionar alguns dos arroubos pelos quais sou invadido, mas de que afinal não sou caso isolado, nem sou o único a olhar o céu!
De conversa sobre o tema com outros conterrâneos, parece ser coisa comum à generalidade daqueles que comigo partilham este código geracional.
Se venho do Algarve, à medida que a planície ganha à serra os contornos da paisagem, começo a sentir-me em torrão familiar. Quando as placas toponímicas indicam a proximidade do útero mátrio, o mesmo coração de menino volta a bater descompassadamente sem que o ouse dominar. Só vejo mesmo a hora de pôr os olhos na torre sineira da minha terra, para de novo dizer: «Estou em casa!»
A esta casa onde volto cada vez que posso, para de novo abalar, para depois regressar e de novo morrer para mais tarde renascer.
Publicado na revista 30 Dias de Março de 2010
8 Comments:
já o disse mas repito: é de cortar a respiração!
José Mestre
Abalar!!! Eis um verbo tipicamente alentejano mas que o duriense Eça de Queirós utilizou bastante. Reminiscências do tempo em que morou no Alentejo, mais propriamente na Herdade da Condeça, no concelho de Serpa, propriedade da sua mulher?!
José Mestre
Este texto "cheira-me" a Manuel da Fonseca !!! Quando o li deu-me a sensação de estar a ler o autor de "Seara de Vento" e "Cerromaior" e de muitas outras obras.
S R D Entradense
"Abalei do Alentejo,
olhei para trãs, chorando.
Adeus terra da minha alma,
tão longe me vais ficando"
Maria Olympia Castro
Boa música, N@po!
Ilda Vicente
Sempre que leio as notas do Pulanito fico maravilhada és um amigo especial
Tenho pressa de sair, Quero sentir ao chegar Vontade de partir
P’ra outro lugar
E Eu fico á tua espera amor da minha vida
bjs
os teus olhos castanhos
Costumo ser uma leitora assidua mas silenciosa. Apenas comentei um texto que me tocava particularmente pois falava de meu querido avô Elisisario ao qual quis deixar a sua homenagem. No entanto ao ler este seu texto revi-me nele . E a sensação que descreve é aquela que sinto de cada vez que abalo rumo ao Algarve. No entanto com a certeza de voltar e entir o cheiro, o calor e o silêncio. Obrigada pela partilha dos seus textos e de me trazer o cheiro, a cor e o silencio do meu Alentejo, de Entradas e de Castro Verde. Muito Obrigada
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