A Navalhinha Alentejana
A navalhinha faz parte da indumentária de qualquer alentejano que se preze.
Para um alentejano, sair à rua sem este acessório, é um pouco como para um urbano sair à rua sem telemóvel. É assim como que uma espécie de nudez em local público; como se nos faltasse a alma; uma certa alma em forma de folha de aço.
Quando um homem entra numa taberna, faz parte do ritual do vinho, sacar da respectiva faquinha com que há-de partir e repartir em minúsculos pedaços aquilo que lhe serve de petisco para tapar o vinho.
Diz-se que dá azar oferecer facas. Quando tal acontece é inevitável que o agraciado retribua com uma moeda para afastar a má sorte que tal oferenda carrega.
Este é um instrumento que se quer de folha afiada, coisa que se faz em pedra de amolar, testando-se o fio da mesma na unha do polegar, sabendo o afiador que esta está no ponto quando esta deixa de deslizar sobre a dita unha.
Existem na minha terra homens que possuem a mesma navalha há décadas, coisa que se pode facilmente comprovar pelo desgaste temporal da folha, que à força de tanto afianço tende a ganhar uma forma helicoidal que só o uso e o tempo lhe conferem.
Meu pai, homem dum tempo em que o tempo tinha a função que o tempo devia ter, jamais se separa dela, tanto que a trás presa a uma correntinha, adereço último sempre que se prepara para uma saída.
Em casa ou no restaurante e mesmo em casamentos e outros eventos onde a pompa não permite tais comportamentos, meu pai, borrifa-se para cânones e “ protocois” e lá ripa da amiga que utiliza para seu governo seja onde for.
Mas a navalha e o vinho quando misturadas com desavenças ou ódios acumulados, pode ser a nossa pior inimiga, não sendo raros os compatriotas meus que ostentam cicatrizes de refrega “navalhal” em forma de tatuagem dum dia que não devia ter existido.
Tenho na lembrança uma dessas desavenças de que fui espectador único. Era um dia de Verão alentejano, dois homens notoriamente embriagados discutiam na taberna do Ti João da Silva onde é hoje o Café Central de Entradas. Nisto o taberneiro põe-nos na rua dizendo-lhe que não quer ali zaragatas.
À distância aprecio a brutalidade etílica dos dois contendores que se encaminham para o campo onde se haveria de dar esse duelo quase mortífero. Pelo caminho que conduzia ao descampado puxam cada um pela sua navalha e quando chegam ao farrejal onde é hoje o campo da bola, desatam a esfaquear-se mutuamente.
Os meus olhos de criança consomem estupefactos o espectáculo degradante que me é dado a assistir, provocando em mim um estado de choque que ainda hoje recordo com alguma precisão.
Um dos ébrios navalhistas chamava-se Ludgero Algarvio, do outro, nem nome nem lembrança, só uma enorme poça de sangue no restolho da memória.
Mas sempre gostei de facas, tanto, que fazem parte das minhas “enfeirações” aquando da Feira de Castro, só para falar daquela em que programo este tipo de mercas.
Tenho facas espalhadas por toda a casa, mais uma colecção de navalhas de vários tamanhos feitios e proveniências que compro ou que me oferecem, e por falar em ofertas de facas apanhei um valente susto certo dia num aeroporto.
Meu amigo António, um espanhol de Albacete, capital do fabrico de cutelarias várias, ofereceu-me uma caixa que eu não sabia o que continha. Como o encontro se deu no aeroporto e eu já havia feito o “check in” levei a caixa na mão.
Ao passar o raio X vejo o polícia puxar duma pistola e mandar-me encostar à parede isolando-me dos outros passageiros que assistiam ao espectáculo boquiabertos.
O polícia de arma na mão perguntou-me para que queria tanta faca e cutelo. Eu estupefacto, sem saber o que o raio da caixa continha só me apercebi quando me mostraram no raio X a panóplia de cutelaria que o meu amigo António me quis oferecer e de que eu só mais tarde me haver recordado de que um dia jantando com ele lhe dei conta dessa minha cisma.
Lá tive de voltar ao balcão e enviar para o porão o arsenal que o António de Albacete me ofereceu; coisa que recorda cada vez que nos encontramos.
A navalha e o alentejano são peças do mesmo puzzle, encaixam perfeitamente uma na outra, encaixam tanto que, no final dos anos noventa, aquando da final da taça de Portugal em que o Campomaiorense defrontou o Beira-Mar e por via da revista policial à entrada dos estádio eram apreendidas todas as navalhas. Um feliz fotógrafo fez o boneco. Eram milhares as navalhas que enchiam o recipiente onde estas se acumulavam, prova de que, onde há um alentejano há pelo menos uma navalha.
14 Comments:
Finalmente encontro a pessoa mais indicada para uma pequena acção de HACCP-MRPP a um amigo e colega Alentejano que trabalha numa cozinha de um restaurante e insiste em manter o velho hábito. Que eles ASAE ASAE...
Caro Napoleão
Felizmente esse uso trágico que de quando em quando era dado a esse objecto tão familiar,encontra-se com baixos índices de aderência,pelo menos pelos nossos sítios.
Um abraço
jmatos
as coisas de que tu te lembras!
melhor é impossivel,e espero que toda a gente passe a ler as cronicas do meu amigo. Bjão
Manuela Albuquerque
Celso Filipe Pereira
É acessório indispensável para quem convive à volta de um porco assado nas brasas.......
Este tipo de "navalhas"(o da foto)saía muito nas rifas. mas lembro-me de umas facas mais sofisticadas que tinham além da lâmina normal, uma lâmina mais pequena que abria em sentido contrário, um saca rolhas, e um abre-latas e cápulas (não me lembro agora se eram uma só peça, se duas separadas)e o cabo era diferente nos dois lados.
P'ró Divor não vale a pena levares a navalha...só se for para ficar no bolso.
Carneiro,
ameacei o Nap que na próxima lhe irei roubar uma ,ou uma dúzia de navalhinhas alentejanas e gajo fechou logo a porta.Eu já percebi!
Lembrou-se daquele episódio em que tu partiste um prato cheio de uvas.E eu fiquei tão envergonhado.
Aquilo não se faz.
Haja Saúde!
jm
mais outro belo quadro da natureza alentejana.
Mário
ola primo aqui ta chovendo. as melhoras do meu tio. bj quica
Caro Napoleão, a existência alentejana teve sempre tantos nós que era preciso haver qualquer coisa que os cortasse.
Abraço.
Eu Mariazinha, t/b uso não uma, mas duas navalhinhas,uma delas herança do meu falecido pai,a outra uma oferta de um familiar há quarenta anos radicado em Luzerne.
Andam sempre comigo, uns tempos atrás fui a um almoço de ex-combatentes algures no n/alentejo, quando eu disse que era alentejana alguém por brincadeira dizia-me que só acreditava se eu lhe mostra-- se um tal objecto que todo alentejano que se presa usa, pois qundo eu saquei da minha navalhinha aí sim, foi gargalhada geral,e sendo eu mulher!...
Gosto muito do que escreve Sr. Napoleão, não fosse eu alentejana do baixo alentejo, é com grande orgulho que o digo.
Uma boa semana para si.
maria
Napoleão; eu também sou como a Mariazinha, ando sempre com duas navalhinhas. A minha navalhinha física, também foi das que a polícia revistou na célebre final da taça, ( Campomaiorense- Beira Mar ) mas ficou arrumadinha e numerada numa prateleira da carrinha policial, e no final do jogo fui recuperá-la. A outra é das que metafóricamente anda sempre afiada...
Se esta Mariazinha fôr a mesma que frequenta outros Blogs que eu também frequento, posso afirmar que a navalhinha metafórica já lhe tem provocado alguns incómodos. Sinceramente, não sei porquê...
Tenho a certeza de que, se a Mariazinha um dia me conhecer verdadeiramente lhe passarão os tais incómodos que involuntáriamente já lhe tenho provocado.
Tenham um bom dia!
Gostava de adquirir uma navalha típica alentejana, mas nem sei se isso existe. Há algum tipo de navalha típico do Alentejo (e fabricada no Alentejo), ou as navalhas de uso comum eram geralmente importadas, por exemplo do sul de Espanha?
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