No "Natal" do Zé Manel.
Todos os anos é assim! Quando já pensamos que as comemorações natalícias terminaram, quando começamos a pensar em ser mais comedidos com aquilo que comemos, quando começamos a pensar em fazer exercício físico de modo a gastar todo o combustível calórico acumulado nos últimos tempos, recebemos a já costumeira chamada telefónica do Zé Manel Santiago que nos convida quase em tom ameaçador: - «vê lá não te esqueças de vir á minha festa de“natal”».
Zé Manel recebe em Albernôa no casão familiar (que a cada ano que passa fica mais aprimorado!), no fim-de-semana a seguir aos Reis os seus amigos mais chegados num ritual que este proclama ser o seu “natal”, visto ser este o dia a que dá mais importância emotiva, como faz questão de expressar.
O motivo, é a matança dos porcos da sua criação que este transforma posteriormente em enchidos e presuntos, que depois de tratados, temperados e curados resultam em iguarias sem rival, tal a fama que granjeou.
Com a matinal chegada dos convivas, o seu rosto escancara-se num enorme sorriso que se assoma às janelas que são os seus olhos verde azeitona por onde lhe podemos espreitar um pedaço da sua alma, essa alma dos Santiago, de que se diz ser o fiel depositário.
Logo pelos alvores os animais são sacrificados, coisa que o nosso anfitrião faz com destreza profissional, desferindo-lhe o golpe de faca certeiro ao coração que os levará a sangrar até à morte; uma morte que o mestre sabe e quer que seja rápida e com o mínimo de sofrimento possível para os animais.
Depois os restantes convivas, queimam, raspam e lavam o animal até que o mestre o dê como pronto para a abertura do corpo de onde lhe serão retiradas as tripas, banhas e restantes miudezas.
A operação é repetida em todos os animais a abate, que serão depois pendurados de modo a enxugarem por vinte e quatro horas, altura em que se fará o desmanche dos ditos.
Quando esta tarefa termina, é a hora do convívio esperado, onde à mesa se degustam os pratos próprios do ritual da matança. Nela não podem faltar a moleja, a cachola frita, as alândias e restantes carnes que Zé Manel retirou do último porco que preparou, manejando facas e cutelos numa precisão relojoeira de quem já repetiu esta tarefa milhares de vezes.
À mesa, esse altar onde a alma alentejana se derrama, come-se, bebe-se e em alegre algazarra e celebra-se essa coisa tão velha como o mundo e que dá pelo nome de: amizade.
Dora, sua mulher e Rita e Paula suas filhas, são os alicerces deste tradicionalista convicto que com a ajuda destas vai aos poucos construindo o seu pequeno mundo; um mundo de independência, conquistado à força de braço de quem não conhece horários nem horas de sono justo, mas que persegue um ideal que passa por um único objectivo: ser feliz!
Pela tarde e quando o vinho naufraga nas gargantas dos comensais, alguém solta as primeiras notas duma velha “moda” local. O momento torna-se quase solene e em uníssono, como se as vozes fossem braços que se enlaçam, acontece a magia da alma alentejana em que e emoção emerge à flor da pele, e lá de dentro, do que temos de mais profundo, solta-se o grito lancinante da terra, imagem de marca de uma gente que se abraça para cantar e que canta em forma de abraço.
Quando a noite se faz verdadeiramente noite, quando o frio de Janeiro já não é bom parceiro, quando o vento zune através das frestas sabemos que está na hora de abalar, coisa que se volta a fazer cantando:
Vamos nós saindo
Por esses campos fora
Que a manhã vem vindo
Nos lábios d’aurora.
Publicado na revista 30 Dias de Janeiro 2010
3 Comments:
A ficção tornada realidade,plasmada em mais um belo texto ,ao melhor estilo do " poeta pintor" da planície dourada Entradense e Por aí...
Parabéns Nap!
Haja Saúde.
jm
Mais um texto que é um verdadeiro regalo para a nossa alma alentejana.
Um abraço
jmatos
gostas tanto dele dorme lá com eles
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