Bandolero!
E pronto, estamos nos resquícios do Natal! A mesa ainda está posta para toda a família que, ou já debandou, ou está à prestes a abalar.
Assim, em jeito de balanço, posso dizer que foi um Natal surpreendente.
Recebemos presentes úteis que retribuímos com coisas que fizeram sentido. E assim, numa demonstração de consumismo moderado, exagerando unicamente nos afectos, lá passámos mais um Natal das nossas vidas.
Meu velhote tem-me deixado em cuidados pela sua saúde, vai daí as preocupações terem sido acrescidas na quadra de que agora recolhemos os despojos, mas curiosamente; sem que nada o fizesse prever, Ti Alexandre (meu pai) arribou, e de dependente passou a quase autónomo outra vez, o que foi para todos nós uma alegria ou mesmo o melhor presente deste Natal.
Voltámos a reunir-nos à lareira, a contar coisas de antanho que fizeram as delícias de quem as desconhecia; coisas do nosso espólio familiar; comparações com tempos de chão de terra e telha vã; coisas de filhoses, pupias e fartos polvilhados com açúcares imaginários; tempos de candeia e escuridão com ventanias e histórias a condizer; episódios quase trágicos de “cavelhariça*” com almocreves e ribeiras intransponíveis em noite de consoada; guardas republicanos a cavalo de monte em monte, protegendo haveres do latifúndio, amedrontando ciganos e malteses que pernoitavam lá para as bandas de Vale João Nabão.
Mas se não eram os mesmos que hoje somos, seremos seguramente os sucessores consanguíneos dessa gente de carne e osso, que também viveu, amou, sonhou e sofreu antes de nós lhes ocuparmos o lugar e carregarmos o testemunho que nos legaram e que tudo faremos para que seja entregue à geração seguinte em sessão solene à volta do madeiro do menino.
Para mim, o Natal é lume e são histórias cujos detalhes crepitam no fogo da imaginação.
A precisão britânica na hora a que Zé Pequenino (perigoso bandoleiro de então!) saía ao caminho lá para as bandas do Monte Canal a quem com ele se cruzasse, era uma das suas marcas.
Vindo da Estação do Carregueiro, conta-se que o meliante saiu ao caminho ao carroceiro Camacho que todos os dias por ali passava (por volta das cinco da madrugada!) com o correio e encomendas chegadas no comboio da noite e que tinham como destino Entradas.
Conta-se que o fatidíco encontro se deu numa noite de frio gélido como a de ontem.
Na débil claridade do lusco-fusco Camacho vislumbrou o reflexo metálico do cano do revólver do pistoleiro, paralisando-lhe movimentos e o pouco pensamento que possuía. Mas afinal, o tal de Zé Pequenino ao invés de o assaltar, apenas lhe pediu que no dia seguinte lhe trouxesse comida e umas onças de tabaco que religiosamente pagou ao Camacho que passou a ser seu correio particular e também seu protegido da maltesaria que por ali abundava, granjeando de imediato os ouvintes desta história que se quer verdadeira, uma notória simpatia pelo marginal libertino, que afinal era apenas um dos nossos a quem a sorte não sorrira, obrigando-o a passar noites e noites em sobressalto e ao relento, não sendo fácil de imaginar quantos natais não terá passado junto à ribeira, nas gélidas noites que são quase todas as que celebram o nascimento do Salvador.
Eu pelo menos imagino um homem desmesuradamente pequeno, (a fazer juz ao seu nome!), de barba, cabelo e roupa negra (assim uma espécie de zorro, mas mais p'ró sacana, menos justiceiro!), olhar frio e penetrante, com uma agilidade fora do comum e uma crueldade que lhe permitia sobreviver no ambiente mais hostil, e não sei bem porquê, uma palhinha ao canto da boca!
Porventura seria mais assustado que assustador, mais cobarde que herói, mais pilha galinhas que grande meliante, mais carente que cruel, mais "cagaloso**" que valente. Mas na hora de escolher entre os guardas a cavalo que o procuravam ,que supostamente defendiam a lei e a ordem, que protegiam pessoas e bens, que também viviam ao relento e em condições inóspitas, que numa hipotética escolha representariam o bem e o salteador o mal, eu escolho o Zé Pequenino, isto porque, no meu peito transtagano bate um coração de malfeitor que não dispensa o ar condicionado nem vinho de marca, mas mesmo assim: Bandolero!
Fossem ciganos
A levantar poeira
A misturar nas patas
Terra de outras terras, ares de outras matas
E eu bandoleiro
No meu cavalo alado
Na mão direita o fado,
Jogando sementes no campo da mente
E se falasses magia sonho e fantasia
E se falasses encanto quebranto e condão
Feitiço transe viagem…alucinação
Miragem
Lucinha – Poeta Brasileira - 1978
Cavelhariça= Cavalariça
Cagaloso = Medroso
3 Comments:
Tenho o hábito de ler os teus contos ao contrário,do fim para o princípio,tal como me habituei a ler os jornais da mesma forma ,sem saber porquê....dá-me mais jeito.
E no fim percebi que o patriarca, nosso habitual anfitrião de Entradas, não estava a passar bem.
Melhorou com os afectos,pendurados na árvore de Natal dos Santiagos e dos Miras,em torno da velha lareira de hábitos e costumes, salutarmente, ancestrais.É isso que mais importa ,por agora...Que recupere totalmente e em breve.
....mas também só agora percebi a razão de nos teres encaminhado,ao cair da noite, para aquela "estrada do medo",entre o Carregueiro e Entradas,aquando da tentativa de batermos os 200 "kapas" com o nosso causídico ultra/portista( perdão, queria dizer ciclista,ou melhor motociclista,ou sei lá o quê)---tens visto o gajo?Parece que ficou um bocado roxo depois da banhada na piscina da Catedral---não lhe digas nada!
Se soubesse que era para que o meliante Zé Pequenino pudesse "apalpar" os "cagalosos" Carneiro , Piteira e Ricardo/Boca Grande,não tinha proposto a desistência que eu corajosamente protoganizei, nem as cãibras que tu manhosamente,descobristes.
...
Mas valeu a açorda de fraca na"Cavelhariça"
Haja saúde!
jm
Essa do "cagaloso" só mesmo nós!..
"alentejanos"
Saúde para o pai, e boas entradas.
maria.
Não fora o nome da autora do poema que encerra este post eu seria capaz de jurar que era do Viriato Ventura.
P.S. - ainda sou do tempo que uma mulher que escrevia poemas era uma poetisa.
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