A Baiuca de Alfama
Ao fim da tarde de ontem (segunda 24-08) liguei-lhe para o convidar para jantar, coisa a que acedeu com júbilo e prontidão, até porque temos assuntos a tratar que necessitam de ser urgentemente agendados.
- Onde queres ir jantar? – perguntou
- Não sei, mas talvez a uma tasca tão velha como a nossa amizade – respondi
- Que me dizes a deambular por Alfama e logo se vê o que se arranja – sugeriu
- Boa ideia. Bora lá - anui
A tarde de Agosto estava quente a pedir um itinerário de copinhos de branco e pastelinhos vários, pelas tascas que ainda não se transformaram em poiso de turistas com pataniscas de bacalhau a preços inusitados.
Como o Fernando não bebe há mais de uma década, não me calhou bem enfrentar o mármore dos balcões a solo, vai daí ficámo-nos pelo passeio pelas múltiplas vielas deste bairro que no virar de cada beco, no estreitar de cada ruela, nos postigos com vista para a novela da tarde, na traquinice das crianças felizes que nos atropelam de juventude, no jeito orgulhosamente bairrista das mulheres que em grupo descem a calçada, nos pintas “carteiros” que topo à distância, no olhar sensível do artista que imortaliza a traço de carvão os cenários da sua inspiração e me fazem lembrar os cascos velhos de muitas das cidades árabes que conheço.
Rejuvenesço sempre que me espanto, e hoje é dia de deslumbramento!
Há um mar de histórias no naufrágio de cada olhar em que insisto ancorar, e destas deambulações faço o meu jogo favorito: inventar vidas de carne e de lume. Vidas com infâncias de arco e gancheta, pião, carica e cromos da bola. Juventudes de incêndio e paixão, sonho e maresia. Ocasos de sabedoria e contemplação.
Destas deambulações faço o meu percurso pelas ancestrais pedras deste fascinante bairro alfacinha.
Ao passar pela estreitíssima rua de S. Miguel damos com uma tasca que outro amigo me havia em tempos recomendado e que por mera coincidência havíamos encontrado.
-É aqui que vamos jantar. Decidi imperialmente sem dar oportunidade ao Fernando de contra-propor .
O lugar chama-se A Baiuca e é um daqueles minúsculos estabelecimentos que não leva mais que duas dúzias de clientes.
Miro em redor e parecem-me quase todos estrangeiros. Gente com olho para o genuíno - penso para com os meus botões!
A proprietária senta-nos juntamente com outra gente que descubro que também não se conhece, mas ali está, ombro com ombro, degustando os excelentes lombos de bacalhau que Dona Lídia a proprietária recomenda a toda a gente.
À porta uns “pintas” locais deambulam por ali como que à procura de um rumo, de uma porta que se escancare para um norte mais prazenteiro.
Um jovem artista de cabelo apanhado à samurai, prepara o seu ganha-pão em forma de carvão e papel pergaminho onde mais tarde esbanjará génio e arte a preços verdadeiramente simbólicos.
A casa enche-se rapidamente e comento com o meu amigo a sorte que tivemos. Nisto dois guitarristas agarram nos respectivos instrumentos e dum canto da Baiuca debitam os sons caracteristicos da cidade branca no dengoso gemer da guitarra portuguesa.
Silêncio que se vai cantar o fado!
Ordena Dona Lídia, proprietária, gerente e mestre de cerimónias desta memorável noite, onde o cante genuíno das vozes populares dos vizinhos, convidados, amadores e da própria Dona Lídia, debitam para os que ali repastam o doce lânguido da canção de Lisboa.
O quadro não podia ser mais natural. Os “pintas” também eles fadistas, encantam quem os escuta, num número há muito repetido e combinado.
Um deles canta dentro de casa, outro responde da rua, criando uma atmosfera de privilégio para aqueles que ali foram pôr à prova os seus sentidos.
Aparecem à larga porta, mulheres, crianças, bêbados, artistas, turistas e demais figuras que fazem daquela passagem onde a luz incide um quadro vivo de que retiro particular prazer.
Estive na Baiuca como peixe na água, e como hoje era dia de S. Deslumbramento, acendo-lhe uma vela imaginária a agradecer tão raro pressentimento.
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