A Baiuca de Alfama
fadista amador cantando na Baiuca
O Fernando Cruz, é meu amigo há mais de 47 anos. Escrevo isto e quase me assusto!
Mas contra factos, não tenho argumentos. No implacável desfolhar dos calendários, no apressado correr de todos os grãos de areia de todas as ampulhetas do mundo, no galopar tiquetaqueante de todos os ponteiros dos relógios, nos sulcos vertiginosos de todas as rugas de todas as faces, sou confrontado com essa terrível mas fascinante realidade, que é a vida!
Quando ocasionalmente nos encontramos tendemos a fazer balanços, tanto mais que consideramos um raro privilégio havermos cultivado esta amizade ao longo das várias vidas que cada um de nós viveu…e acreditem que as vivemos!!
Ao fim da tarde de ontem (segunda 24-08) liguei-lhe para o convidar para jantar, coisa a que acedeu com júbilo e prontidão, até porque temos assuntos a tratar que necessitam de ser urgentemente agendados.
Ao fim da tarde de ontem (segunda 24-08) liguei-lhe para o convidar para jantar, coisa a que acedeu com júbilo e prontidão, até porque temos assuntos a tratar que necessitam de ser urgentemente agendados.
- Onde queres ir jantar? – perguntou
- Não sei, mas talvez a uma tasca tão velha como a nossa amizade – respondi
- Que me dizes a deambular por Alfama e logo se vê o que se arranja – sugeriu
- Boa ideia. Bora lá - anui
A tarde de Agosto estava quente a pedir um itinerário de copinhos de branco e pastelinhos vários, pelas tascas que ainda não se transformaram em poiso de turistas com pataniscas de bacalhau a preços inusitados.
Como o Fernando não bebe há mais de uma década, não me calhou bem enfrentar o mármore dos balcões a solo, vai daí ficámo-nos pelo passeio pelas múltiplas vielas deste bairro que no virar de cada beco, no estreitar de cada ruela, nos postigos com vista para a novela da tarde, na traquinice das crianças felizes que nos atropelam de juventude, no jeito orgulhosamente bairrista das mulheres que em grupo descem a calçada, nos pintas “carteiros” que topo à distância, no olhar sensível do artista que imortaliza a traço de carvão os cenários da sua inspiração e me fazem lembrar os cascos velhos de muitas das cidades árabes que conheço.
Rejuvenesço sempre que me espanto, e hoje é dia de deslumbramento!
Há um mar de histórias no naufrágio de cada olhar em que insisto ancorar, e destas deambulações faço o meu jogo favorito: inventar vidas de carne e de lume. Vidas com infâncias de arco e gancheta, pião, carica e cromos da bola. Juventudes de incêndio e paixão, sonho e maresia. Ocasos de sabedoria e contemplação.
Destas deambulações faço o meu percurso pelas ancestrais pedras deste fascinante bairro alfacinha.
Aspecto da fachada da Baiuca
Ao passar pela estreitíssima rua de S. Miguel damos com uma tasca que outro amigo me havia em tempos recomendado e que por mera coincidência havíamos encontrado.
-É aqui que vamos jantar. Decidi imperialmente sem dar oportunidade ao Fernando de contra-propor .
O lugar chama-se A Baiuca e é um daqueles minúsculos estabelecimentos que não leva mais que duas dúzias de clientes.
Miro em redor e parecem-me quase todos estrangeiros. Gente com olho para o genuíno - penso para com os meus botões!
A proprietária senta-nos juntamente com outra gente que descubro que também não se conhece, mas ali está, ombro com ombro, degustando os excelentes lombos de bacalhau que Dona Lídia a proprietária recomenda a toda a gente.
À porta uns “pintas” locais deambulam por ali como que à procura de um rumo, de uma porta que se escancare para um norte mais prazenteiro.
Um jovem artista de cabelo apanhado à samurai, prepara o seu ganha-pão em forma de carvão e papel pergaminho onde mais tarde esbanjará génio e arte a preços verdadeiramente simbólicos.
A casa enche-se rapidamente e comento com o meu amigo a sorte que tivemos. Nisto dois guitarristas agarram nos respectivos instrumentos e dum canto da Baiuca debitam os sons caracteristicos da cidade branca no dengoso gemer da guitarra portuguesa.
Silêncio que se vai cantar o fado!
Ordena Dona Lídia, proprietária, gerente e mestre de cerimónias desta memorável noite, onde o cante genuíno das vozes populares dos vizinhos, convidados, amadores e da própria Dona Lídia, debitam para os que ali repastam o doce lânguido da canção de Lisboa.
Dona Lidia entregando-se nas mãos do fado
O quadro não podia ser mais natural. Os “pintas” também eles fadistas, encantam quem os escuta, num número há muito repetido e combinado.
Um deles canta dentro de casa, outro responde da rua, criando uma atmosfera de privilégio para aqueles que ali foram pôr à prova os seus sentidos.
Aparecem à larga porta, mulheres, crianças, bêbados, artistas, turistas e demais figuras que fazem daquela passagem onde a luz incide um quadro vivo de que retiro particular prazer.
Estive na Baiuca como peixe na água, e como hoje era dia de S. Deslumbramento, acendo-lhe uma vela imaginária a agradecer tão raro pressentimento.
Etiquetas: A Baiuca, alfama, Bairro Alto, fado, Mouraria
6 Comments:
Quando entras não falhas.
O tal sexto sentido que, no teu caso ,me faz pensar que se trata de uma alquimia genuína que tu vais inventando.Por aí...
Haja saúde!
jm
Pulanito
Pediram-me os donos do "Alpendre", fotografias de Entradas, penso que para fazer alguns "quadros" para decorar o restaurante. Como não tenho nada de interessante que possa ser exposto e dignifique a nossa santa terrinha e os seus bonitos lugares, pensei logo que tu serias a pessoa indicada para teres tal espólio. Também me pediram fotos do velho moinho (actual depósioto da água), com o mesmo propósito, será que podes satisfazer o desejo do casal?
Cumprimentos
Mª. Lucília
mais um texto à Pulanito, daqueles que nos dá vontade de percorrer as ruelas dessa lisboa que é mais conhecida dos turistas que dos próprios lisboetas.
Abraço
Bruno. S.
Caro Napoleão
vai pensando em fazer um roteiro dos pontos à la Pulanito.
Clientes para a compra do mesmo de certeza que não irão faltar.
Um abraço jmatos
Comovente texto este do autor, que nos vai dando conta do que lhe vai nas entranhas ao calcorrear as ruas da bela Alfama.
Li e reli, gostei e recomendei.
Xana Mendes
À falta de melhor envio esse poema de David Mourão-Ferreira (um nome grande da cultura portuguesa), musicado por Alain Oulman( o homem que musicou uma grande parte dos êxitos de Amália) e interpretado pela grande fadista Amália (proposiatadamente escrevi apenas Amália, para quê adjectivos?! Amália precisa(va) disso?|
Madrugada de Alfama
Mora num beco de Alfama
e chamam-lhe a madrugada,
mas ela, de tão estouvada
nem sabe como se chama.
Mora numa água-furtada
que é a mais alta de Alfama
e que o sol primeiro inflama
quando acorda à madrugada.
Mora numa água-furtada
que é a mais alta de Alfama.
Nem mesmo na Madragoa
ninguém compete com ela,
que do alto da janela
tão cedo beija Lisboa.
E a sua colcha amarela
faz inveja à Madragoa:
Madragoa não perdoa
que madruguem mais do que ela.
E a sua colcha amarela
faz inveja à Madragoa.
Mora num beco de Alfama
e chamam-lhe a madrugada;
são mastros de luz doirada
os ferros da sua cama.
E a sua colcha amarela
a brilhar sobre Lisboa,
é como a estátua de proa
que anuncia a caravela,
a sua colcha amarela
a brilhar sobre Lisboa.
Desculpa a extensão do meu "comentário" que é quase tão grande como os teus posts.
Um abraço - José Mestre
P.S. -Não conheço tão bem Lisboa como tu mas creio que os bairros antigos de Lisboa têm todos algo de
pitoresco e como dizia o Eça através de uma das suas personagens :" a vida não é possível sem um bocado de pitoresco depois do almoço."
Enviar um comentário
<< Home