Tempo de Ciganos - Ele há dias assim!
Tem dias que bicicletar é um acto de pura poesia, pelo menos a avaliar pelo dia de hoje (Sábado 3 de Maio) que, ou muito me engano, ou as negras aves da minha crença, devem ter tido algo a ver com o que me é dado a sentir e contemplar.
Depois da tempestade vem a bonança. De facto, depois de mais de oito tempestuosos dias em que andei mal de saúde regressei hoje ao selim da minha máquina.
10.00 horas: saio de Entradas em direcção a Castro Verde. Pedalo sem destino programado, vou para onde os ventos e a vontade me levarem. Experimento o meu corpo para ver como reage ao esforço e não sinto nada, começo a ser invadido por um raro prazer de pedalar que só os que andam nesta vida poderão ou não aquilatar.
Tenho nas pernas os primeiros quilómetros e nos meus auscultadores a selecção musical que há muito me acompanha. Tenho Castro à vista, Freddy Mercury debita “ Mama just killed a man…put a gun against is head” , os campos estão atapetados de flores silvestres que transfiguram este Alentejo, cuja metamorfose policromática floral, só se fará de novo sentir quando for outra vez tempo de Primavera.
De repente à beira da estrada vejo um jovem cigano de tês cor de mel e olhos de lume, que sorrindo me acena com a foice aos céus erguida, segurando no outro braço um molho de espigas, pimpilhos, margaças e papoilas, que fazem deste momento que procurei de imediato congelar na memória, uma celebração, um fugaz monumento à liberdade e à comunhão daqueles que no seu intimo, sabem que afinal, todos os homens são iguais.
Vejo e revejo no ralenti da memória e no silêncio que o momento merece, o instante em que nos aproximamos, cruzamos e separamos, mas que eternizamos no acaso dum único relance em que os nossos olhares se irmanaram na beleza dum feliz fotograma imaginário.
Continuo a pedalar sem sentir as pernas e num ápice chego a Castro Verde, viro agulha para Aljustrel. Não sei porque virei para aqui, mas gosto do ondulado desta estrada que se faz como se a estrada fosse um mar, as lombas ondas suaves, e a bicicleta quase que surfa a crista de cada onda da estrada, para de logo sermos levados pela força da inércia por outra lomba abaixo, e assim sucessivamente.
Faço mais uma dezena de quilómetros e quero que isto não acabe. À passagem pela povoação do Carregueiro, de novo os ciganos. Duas carroças carregando o espólio destes peregrinos da paisagem transtagana, que só o alguidar de plástico azul-bebé, me diz que esta é uma incursão nómada em pleno século XXI, de resto tudo igual como há séculos ou pelo menos desde que me conheço.
No carro puxado por uma besta, para além de todos os haveres necessários para as tarefas diárias, vai ainda sentada toda a família.
No carro da frente um casal jovem, não terão mais que vinte e poucos anos, mas filhos que contei, contando o que esta amamentava eram três.
À volta de cada um dos carros, uns quantos exemplares de gado mular anunciam o modo de vida destes nómadas da planície, que ou muito me engano, ou já só negoceiam entre si.
Que força é essa que te protege da invasão desta pseudo-modernidade, onde regras, leis e comportamentos, são por ti nobremente rejeitados ou ignorados?
Que fórmula genética é essa que te leva a seguir adiante, como se a tua vida fosse um novelo feito presságio que terás de cumprir de acampamento em acampamento até ao dia da tua morte?
Dou comigo a pensar!
No momento em que me ocorre este pensamento surge nos meus auscultadores a voz de António Variações (outro cigano entre Braga e Nova Iorque) cantando o poema de Pedro Homem de Melo imortalizado por Amália - Povo Que Lavas no Rio.
Sou invadido por uma aura de felicidade e estremeço. Vivo cada instante desta viagem como se fosse uma dádiva (volto a pensar que as minhas andorinhas andam metidas nisto) e penso que não vou poder compartilhar com ninguém este Sábado surreal.
Por um lado apetece-me pedalar até á exaustão, por outro lado apetece-me voltar para trás e escrever sobre esta mística manhã.
Foi o que fiz!
Domingo 4 de Maio
Levanto-me relativamente cedo. Nem sequer me permito outro pensamento que não o de pedalar os quilómetros que possa.
O tempo está relativamente farrusco, mas há-de abrir-se lá mais para as dez.
Meto nas pernas perto de 100 Km, por estradas secundárias que me levaram de novo a Castro Verde, Aljustrel, Ervidel, Santa Vitória, Penedo Gordo, Beja com regresso marcado para a hora de almoço em Entradas.
Os Domingos são sempre penosos, até porque a segunda-feira está ali ao dobrar dos ponteiros do relógio e essa é uma fatalidade que não posso combater.
Domingo que vem lá estarei em Évora para treinar com o grupo que integrarei na viagem a Santiago de Compostela.
Tenho outros posts na cabeça, acerca de episódios que entretanto foram acontecendo.
A ver se ganho coragem para os escrever e compartilhar com aqueles que têm a paciência de ir por aqui passando.
4 Comments:
Estou plenamente de acordo contigo amigo Napoleão! sempre detestei (e detesto) os domingos. Sabes aquela anedota em que o Domingos diz para o seu amigo Dias : " Há dias mesmo lixados(ele utilizou um vocábulo mais vernáculo que não ouso escrever aqui mas que tu e os leitores subentendem)ao que o Dias respondeu de imediato :"especialmente os domingos"
Há muito que não via uma imagem de ciganos como esta, igual ás que me ficaram na memória do antigamente. Pensava que estas deslocações, adorei a descrição do alguidar, já tinham acabado. Agora seria mais aquela da familia inteira no centro comercial a comerem um gelado. Embora tenha crescido a ouvir dizer para ter cuidado com eles e afastar-me de qualquer ajuntamento de ciganos, nunca tive medo deles e até senti sempre um certo fascínio pela liberdade e irreverência das suas vidas. Hoje, do alto dos meus 47 anos até sei que afinal anda para aí muito mais cigano sem o ser.
PS: Parabêns pelo seu aniversário, saúde e felicidade para mais um ano de vida.
Olá!
Fiz um post com um conto cigano e gostei muito da sua fotografia para pôr no meu blog... Naturalmente com link para aqui! :)
Espero que não se importe, mas, se não achar bem, diga... :)
Também gostei do seu texto e da anedota de josé mestre ;)
Tudo bom para si e para ele
Grande SAMUEL...tenho uma grande admiração por ele e pelo seu trabalho!! Parabéns pelo filho que tem....ele é grande!! Um grande abraço pa voçes
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