Pai Chão
A essa coisa a que nos agarramos e que chamamos de bairrismo, chamo eu de: pai-chão, que é assim uma forma de nos expormos ao ridículo mas sem nos importarmos de ser lamechas, triviais ou mesmo repetitivos.
Hoje, deixo correr o pensamento pelas caras que povoam a minha avenida e que fazem dos meus dias alentejanos, um ritual que tem tanto de banal como de admirável.
Aqui na Avenida de Nossa Senhora da Esperança em Entradas, que nos tempos de mocidade dos meus pais era um enorme largo (chamado então de Rossio), encimado por um cruzeiro, o poço da vila mais abaixo e uma ponte sobre o barranco a demarcar o limite mais a sul. Foi por aqui que a Vila de Entradas se começou a expandir no início do século passado, formando duas filas uniformes de casas térreas caiadas de branco que ladeavam esses imenso largo.
Belmiro Isidro Caeiros, era ao tempo da minha infância o presidente da Junta de Freguesia e um corporativista assumidíssimo, que deixou em Entradas uma obra de envergadura se atendermos aos meios de então e à dimensão da pequena vila.
O Rossio de Entradas, passou a Avenida por via da pertinácia deste homem, que esteve para Entradas como Duarte Pacheco terá estado para o país.
Com os escassos meios económicos e materiais de então, conseguiu alterar substancialmente a fisionomia da vila de Entradas. Mandou construir o edifício da Junta de Freguesia (uma referência arquitectónica de Entradas no estilo Raul Lino) ordenou o calcetamento de todas as ruas principais, engendrou criar um espaço verde na nova avenida, dividindo assim em duas vias com um excelente jardim central, o ancestral Rossio Entradense.
Dessa radical modificação, nasceu uma Avenida que é hoje o ex-libris de Entradas ( com citações em vário livros da especialidade como um exemplo de arquitectura popular) e motivo de admiração para quem nos visita e que a nós, nos enche de orgulho.
Sou guiado por cheiros!
Aqui nesta ampla alameda reconheço os odores matinais dos produtos que os vendedores ambulantes nos trazem à porta de casa. Um luxo nos dias que correm!
Pelo fresco da manhã, por uma greta, ou por um postigo entreaberto, pressinto o cheirinho a café que vem quase sempre lá da cozinha ao fundo da casa, percorrendo o corredor e penetrando nas minhas intrusas narinas.
Quando o peixeiro passa, deixa no ar o perfume de um mar distante, que à força de gelo, mantém frescos os produtos oceânicos que nos vende de porta em porta.
Há carapau e pêxe – era o grito de guerra de Custódio Feio, peixeiro antigo, montado na sua Famel com a canastra no suporte tapada com serapilheira molhada. Há alguns anos retirou-se destas lides, cedendo lugar a outra geração, que continua a servir-nos de porta em porta, mas com um equipamento mais condizente com os tempos e exigências de agora.
Ainda pela manhã e a distintas horas passam padeiros daqui e doutras terras. Quando abrem as portas para aviarem a freguesia, brota do cavername destes veículos um cheiro intemporal a pão fresco que invade o espaço e dependendo da hora da aquisição, marca o começo do dia de cada uma dessas famílias.
Mais à frente reparo no Pardal empurrando o seu carro-oficina. Diz-me que vai reparar umas portas a uma velhota que não tem com que lhe pagar. Agarro-me a esta vulgaridade que é a generosidade Entradense e volto a um antiquíssimo pensamento de quem já correu mundo: É bom estar de volta!
Quando vejo o Pardal empurrando o seu carrinho de madeira carregado de ferramentas de carpinteiro, é inevitável que viaje no tempo (que me desculpem, os que me acham lamechas e repetitivo). É para mim inevitável fazer este percurso às minhas entranhas e revisitar os vendedores ambulantes que me povoam a memória.
Lembro-me do Sr. Celestino que teria um carro doutro formato, mas que com a mesma forma de locomoção, percorria as (poucas mas longas) ruas de Entradas vendendo panos, botões, fitas e cordões na sua retrosaria ambulante, também possuía um pequeno estabelecimento de venda dos mesmos produtos, que para se fazer assinalar tinha pendurado à porta um chapéu domingueiro feito de lata; chapéu esse, com que vezes sem conta me reencontro nas revisitações entradenses que me perseguem.
Lembro-me (e lambo-me só de neles pensar) dos vendedores de batata-doce cozida que deambulavam pela vila, procurando com a venda deste produto compor o parco orçamento familiar.
Grupo de ourives de abalada ( de Vilamar) para mais uma campanha...de reparar que se vestiam "de grave "para o negócio.
De quando em vez aparecia um homem bem trajado montado na sua bicicleta pasteleira e no suporte uma caixa metálica verde escura; mal se apeava retirava de imediato as molas metálicas que lhe prendiam às pernas as bocas das calças. Era o ourives ambulante, que vindo lá de Alcanena ou Vilamar (terras de onde estes profissionais era originários) percorria o Alentejo até às cercanias do Algarve. Andava de terra em terra vendendo essencialmente ouro, mas também trazia relógios de pulso e de bolso, e por vezes, também fazia de oculista, trazendo as lentes dióptricas em falta para aqueles que delas necessitassem.
Na minha povoada lembrança há ainda lugar para o Baltazar Madeira Coelho, acordeonista e animador de “balhos” desde que me lembro, mas que também retenho por outros nobres motivos.
Baltazar (gosto deste nome!) cedo ficou cego, mas tal incapacidade nunca foi impedimento para o governo da sua vida, quer no que diz respeito à parte musical, como à lida e labuta do dia a dia. Falando da fauna que povoava a avenida, Baltazar era quem nos chegava com os produtos frescos da horta de seu pai (agricultura biológica, nesse tempo não se conhecia outra; hoje é um luxo!) que com a sua carrinha puxada por uma velha burra, vendia a colheita dos produtos que estavam no seu tempo.
Também aqui, corria atrás deste conterrâneo, unicamente com fito de me deliciar com o cheiro dos produtos que este a diário trazia à venda. Ainda hoje tenho a mesma mania que é considerada má educação, mas continuo a meter primeiro o nariz, e só depois os olhos.
Quando o Verão chegava, meu tio Joaquim Algarvio ia a Alvalade comprar uma carrada de melancia. Aparelhava a besta à carrinha e abalava noite cerrada levando sempre um ou dois dos sobrinhos mais velhos como companhia para ele, e aventura para estes.
Regressava ao fim da tarde, onde o resto da prol sobrinhal aguardava para ajudar à descarga, pesagem e marcação dos valores a cobrar por cada uma das deliciosas melancias de Alvalade, que seriam vendidas no dia seguinte de porta em porta, pelos que não tinham ido na viagem. Era uma aventura e peras!
Devemos estar mais ou menos a meio deste post…portanto se pretenderem abandonar, voltar outro dia ou coisa que o valha, é este o momento. Caso contrário continuemos este anárquico passeio pelas memórias deste escriba que passam inevitavelmente pela Avenida de Nossa Senhora da Esperança em Entradas.
Num tempo em que a electricidade ainda não havia chegado a Entradas (chegou em 63..se não me engano) os entretenimentos da população eram completamente diferentes daquilo que hoje são. Não havia electricidade, logo não havia televisão e radiotelefonia só para uns quantos abastados.
Os que só se tinham a si, só consigo podiam contar, ou então, com os da sua igualha, daí que muita da entretenga de crianças, jovens e adultos passasse por ouvir contar histórias ao serão.
De Inverno à roda do fogo, imaginando os protagonistas dos relatos na dança flamejante das labaredas; de Verão, sentados ao fresco ouvindo em silêncio as peripécias de heróis nossos conhecidos, aqui e ali interrompidas pelos cumprimentos de outros que tinham como entretenimento passear ao sereno nas noites quentes de Verão.
Das situações que mais desconforto causavam à população, era a visita da Guarda Nacional Republicana, que montada nos seus cavalos, faziam com que à sua chegada toda a gente recolhesse a casa, e aguardasse a sua passagem com o coração a bater descompassadamente, enquanto os mais afoitos, sustendo a respiração, os espreitavam pelas frestas da janela.
Nunca mais gostei desta gente, e ainda hoje, tenho alguma repugnância em falar com muitos deles.
Por outro lado não tinha qualquer receio dos malteses, essa gente libertária que percorria os campos e terras do Alentejo, fintando um destino incerto e essa mesma guarda, que eram afinal os seus (e os nossos) piores inimigos.
Ao tempo “andar na maltesaria” era essa coisa de andar sem destino, sem horários, sem patrão, enfim, eram seres livres que pagavam o preço da sua opção vivendo do que lhes davam, dormindo onde e com quem calhava, fazendo aqui e ali um trabalhozito temporário, e quando tal não aparecia, não restava outra alternativa que não fosse surripiar um borrego ou uma galinha para comerem junto à ribeira, zona preferida desta tribo onde se costumavam reunir e muitas pernoitar.
Josué dos Galos, Maria Franca, Folha de Couve, Xarata, Bia, Cagote, Pinta Cagada, Zé Pequenino e José do Corno eram alguns dos nomes que faziam poiso por estas bandas, mas do que me lembro com mais clareza é do Manel de Santa Bárbara, porque o conheci pessoalmente, mas também porque eram dele, muitas das histórias com que éramos presenteados nesses serões entradenses.
Regresso á avenida de hoje e onde não vou há três semanas, daí este meu provável exercício feito em forma de compensação.
A partir de agora, quando o calor começar a apertar e sempre que no calendário for dia de Sábado, umas quantas portas acima da minha, o vizinho Marques há-de em alto e bom som pôr uma aparelhagem a tocar unicamente “ modas” alentejanas que escutará resfaltado na sua cadeira de praia que pranta em pleno passeio; “modas” essas, que perfumarão o ar com um cante que é nosso.
Este quadro Entradense era até há pouco completado com o vizinho Elesiário (morreu recentemente) que do lado sul da minha casa acompanhava ao vivo as “modas” que o Marques debitava mais acima nos seus altifalantes.
Olho para o outro lado do passeio e vejo caminhar pelo passeio os 3 manos Guerreiro Mestre, sempre em carreirinho atrás uns dos outros e pela mesma ordem. Parecem aquela banda de SKA, chamada Madness. Devem ir beber café, penso!
Primo Zé das Pestanas, acena-me e diz-me lá de longe que tem uma coisa para mim. Não tarda em aparecer com uma couve portuguesa de encher o olho. Faço de imediato uma troca e ofereço-lhe uma garrafa de vinho para o almoço.
Este hábito de ofertar coisas entre si, é na vizinhança Entradense uma coisa há muito enraizada e demonstrativa do apreço que uns nutrem pelos outros.
O meu sonho é ser aldeão.
Levantar-me pela manhã quando o dia raia
Partir por aí à bolina das veredas
Entranhar-me nelas sem destino
Descobrir prados verdejantes e penedos agudos
Regressar pelo sereno ao povoado
E com o meu bordão de caminheiro
Num gesto de insanidade
Contar uma a uma, as pedras desta calçada
14 Comments:
Há muitos anos um senhor de nome Francisco de Assis Lopes Guerra, residente no Monte do Ulmo, freguesia de Santa Vitória, concelho de Beja,publicou no Diário do Alentejo, princípio dos anos 60 do século passado (XX) o seguinte poema dedicado a Entradas e que creio que foi cantado (não tenho a certeza) pelos "Ceifeiros de Entradas": Aí vai o referido poema que trannscrevo com a devida vénia:
Entradas, vila modesta,
De tão nobres tradições
De ti tudo o que me resta
São gratas recordações.
As tuas casa branquinhas,
O Largo da Boa Esperança
São tudo lembranças minhas
Dos meus tempos de criança
Somos ceifeiros, ceifamos
O pão nosso de cada dia
Quantas vezes nós cantamos
Com disfarçada alegria.
Trabalhamos todo o dia
Debaixo do sol ardente
Só quem trabalha avalia
As dores que o coepo sente.
temos as mãos calejadas
De vencer tantas batalhas
As foices nossas espadas
Os calos nossas medalhas
nima noite de orvalho
temos as mãos calejadas
ded vencer tantas batalhas
as foices nossas espadas
os calos nossaso medalhas.
Mais um texto de se lhe tirar o chapéu. As fotos ilustram na perfeição as palavras certeiras com que o Pulanito nos habituou.
O pequeno poema final é duma subtileza arrepiante.
Abraço
Bruno S.
Amigo Pulanito!
Gostei muito deste texto e também do novo videoclip do Samuel. Digo também para ir ver o meu blog e comentar (se quiser)as últimas postagens. Um abraço e fique bem.
Napoleão espero que um dia destes publiques um livro com estes teus escritos que tocam nos corações de muita gente de Entradas e pelos vistos também de outras paragens.
Pelo respeito que tens pela calçada da nossa terra e sabendo tu o quanto alguns a querem tapar com alcatrão aí vão dois pequenos versos da minha autoria em defesa acérrima da mesma;
Eu amo aquelas pedrinhas
Por onde eu passo a andar
Parece mesmo que são minhas
Eu quero-as sempre pisar
Aos que comigo estão
Eu exijo uma cruzada
Marchemos contra o alcatrão
Sobre as pedras da calçada.
Oh...Pulanito mas que bem que sabe recordar esse passado, que muitos tivemos o prazer de viver, realmente há cheiros que ainda hoje recordamos como se agora mesmo. E lembro-me do cheiro das maçanitas do Vale da Sarnica ( da Sr. Maria da Soledade, do Sr. Joaquim e da Sr. Maria do Carmo),´que ao passarmos na rua nas tardes de Junho nos deliciávamos com o cheiro que trespassava por debaixo da porta ou pela gateira.E lembro-me do cheiro a forno e a pão da ti Mari Francisca e lembro-me da ir à da ti Gabriela Barradas comprar 200g de galinha caseira, que num àpice de tempo a mulher matava e depenava para rápidamente a partir e vender em quantos bocados quantas as freguesas presentes.E lembro-me e lembro-me, já são muitas as lembranças e para que não caiam no esquecimento antes do alzheimer ou outra qualquer demência chegar, a ideia do anterior bloguista é excelente. Compilar estas e outras memórias da nossa terra num documento a tornar público é a tua tarefa e com a obstinação que te conheço, o projecto tem pernas para andar. Todos vamos colaborar de certeza.
Entradense
É deliciosa a maneira como o autor descreve pessoas e lugares.
Parabéns pelo exemplo que nos deixa.
Conte comigo para divulgar este seu espaço.
Helena Tavares - Lisboa
aos pouco o Pulanito vai-nos deixando aquilo que pensa e sente em relação ao que o rodeia, tendo particular atenção para com essa maravilhosa terra (que ainda não conheço, mas de que já sei tanto) que é Entradas.
Ruben
Um texto à la Pulanito!
No poema que remata este pot há algo de Alberto Caeiro! ou será de Viriato Ventura.
Boa Páscoa.
Um abraço
José Mestre
P.S. Já pagaste a bu(r)la?
meu caro amigo e vizinho do outro lado da avenida.
Acho que acertaste na mouche, quanto á ambiência do pequeno poema.
Quando o escrevi tive essa sensação de "guardador de rebanhos" que tu tão bem descobriste.
A bu(r)la nunca a paguei...como sabes, respeito mas não ligo a esses canones religiosos que não guiam a pessoa que tu conheces.
Abraço
Gosto de viajar pelas personagens da tua terra...ou pelas tuas, neste caso! É uma delícia ler os teus posts.. :))
Tomei a liberdade de te enviar este poema do poeta Gomes Leal porque sei que te identificas com ele:
AS ALDEIAS
Eu gosto das aldeias sossegadas,
com seu aspecto calmo e pastoril,
erguidas nas colinas azuladas,
mais frescas que as manhãs finas de Abril.
Pelas tardes das eiras, como eu gosto
de sentir a sua vida activa e sã!
Vê-las na luz dolente do sol-posto,
e nas suaves tintas da manhã!...
As crianças do campo, ao amoroso
calor do dia, folgam seminuas,
e exala-se um sabor misterioso
da agreste solidão das suas ruas.
Alegram as paisagens as crianças
mais cheias de murmúrios de que um ninho;
e elevam-nos às coisas simples, mansas,
ao fundo, as brancas velas dum moinho.
Pelas noites de Estio, ouvem-se os ralos
zunirem suas notas sibilantes...
E mistura-se o uivar dos cães distantes
com o cântico metálico dos galos.
Claridades do Sul
Um abraço do
josé Mestre
Meu Caro José Mestre,
Para além de leitor atento, também contribuis para enriquecer as ambiencias dos posts que aqui vou ocasionalmente deixando.
Um abraço
Meu Caro José Mestre,
Para além de leitor atento, também contribuis para enriquecer as ambiencias dos posts que aqui vou ocasionalmente deixando.
Um abraço
Enviar um comentário
<< Home