Coisas minhas!
Parece que os deuses querem que eu fique aqui por casa, em vez de queimar quilómetros em cima da bicicleta.
Cheguei a Entradas (na passada sexta-feira) com uma vontade férrea de fazer três dias de intensivos treinos e por consequência pôr nas pernas mais um pouco de resistência para a viagem a Santiago que se aproxima a passos largos.
Curiosa perspectiva de Entradas com a igreja matriz ao fundo
Como a vontade dos deuses não se deve contrariar sob pena destes nos penalizarem de forma exemplar, fico-me aqui por casa a ouvir o excelente disco de Rodrigo Leão, na forma de banda sonora de uma admirável série que há poucos meses passou na televisão: Portugal Um Retrato Social, que o sociólogo António Barreto tão bem soube fotografar.
Desde as sete da manhã que não pára de chover, o que confesso seria do meu agrado, caso não tivesse em mente outros planos.
Assim tenho alternado prolongadas estadas em casa com passeios com os meus “velhotes” que estando a percorrer a estrada do ocaso da vida, merecem que disponibilizemos com eles tempo de qualidade.
Como só o meu pai estava em Entradas na sexta-feira aproveitei para o convidar a dar um passeio (como ele tanto gosta) pela verdejante charneca alentejana que por esta altura é simplesmente um regalo para os olhos de quem passa.
Meu pai vai comentado desde a pedra à seara, passando pelos grandes rebanhos, que pela sua quietude afirma parecerem ter sido plantados.
No caminho comenta-me o momento politico e a vontade de esganar “ aquela corja de bandidos”, momento sempre hilariante porque na lista de preferências não há lugar para mais que dois ou três nomes, sendo que todos os restantes sem excepção deveriam de ser fuzilados, coisa que mentalmente já levou a cabo umas boas dezenas de vezes.
Percorrendo as estradas do Alentejo de Baixo vamos dar à Salvada, que é uma terra que para quem não conhece Beja fica-lhe nos arredores, conforma chalaçam os locais de modo a dar uma maior importância ao seu amado quinhão.
Desembocámos no Café do Mercado, uma espécie de restaurante que funciona nas instalações do antigo mercado e onde se comem os melhores achigãs escalados da região, que depois de grelhados são temperados com um molho de azeite, alhos e coentros.
É na verdade um pitéu de se lhe tirar o chapéu este prato que torna conhecido o António do Café do Mercado.
De regresso por outros caminhos a Entradas passámos na Cabeça Gorda – terra de que as mulheres gostam mais, sendo Ponta Delgada aquela de que menos gostam – gracejo brejeiro que se conta nas tertúlias machistas desta terra.
A chuva não parou em toda a tarde, ia vinha em esgarrões e trovoadas e assim se fez noite. Com ela veio mais chuva e vento, que no aconchego do madeiro que pus ao lume me dava uma sensação de paz e conforto, até porque vim sozinho para o Alentejo.
Quando no Sábado me levanto ainda me vesti com roupas de bicicletar, mas depressa tirei daí o sentido. A incessante chuva e vento pareciam não dar sinais de amainar.
Gosto muito de ouvir estórias antigas. Como sou de um época intermédia entre a modernidade e o arcaísmo de uma época recente, consigo ainda tocar-lhe e sentir-lhe a rudeza de um tempo que aos olhos de hoje só o posso apelidar de heróico.
Ao almoço lá vêm as comparações, sendo inevitável que os episódios de antanho venham à baila.
À pergunta de onde eram naturais os meus avós maternos, minha mãe intervêm e diz-me que minha avó Chica (Francisca da Encarnação) era natural de Vale de Camelos e seu pai (meu bisavô) de Vale de Cavalos.
Minha mãe diz que não conhece nem uma nem outra terra, que afinal são também torrões donde descendo e de onde descendem os meus. Logo ali decido que depois de almoço iremos a Vale de Camelos que sei onde fica por ter visto na estrada de Mértola uma placa indicadora.
Vale de Cavalos ficará para uma próxima oportunidade.
Logo ali começámos a imaginar como seria Vale de Camelos. Se seria um monte perdido nas cercanias da Ribeira de Cobres, se uma aldeia abandonada ou se, pelo contrário, seria uma terra que por via da construção dos imigrantes havia crescido e prosperado.
Montámo-nos na viatura todo o terreno e lá fomos os cinco levar minha mãe, que já conta 81 longos anos à terra desta minha avó, emocionados com a descoberta de que afinal Vale de Camelos que até ali tinha tida 81 anos de silêncio estava ali, à distância de um “ bora lá”.
Pelo caminho dou comigo a sentir um inusitado frenesim de quem vai à descoberta.
Penso que pisarei o chão onde nasceu a bisavó dos meus filhos e mãe da minha mãe, que apesar de todas as facilidades de hoje nunca tinha visto as paisagens que fizeram sonhar a sua progenitora.
Aí chegados, damos com um Monte perdido entre a terra ondulante que circunda a Ribeira de Cobres, com umas quantas casinhas térreas caiadas de branco e com barras multicores o que não é muito usual por estas bandas.
Vale de Camelos
Metemos conversa com uma habitante local cujas feições me faziam lembrar a minha mãe. Pensei que teríamos sorte e desdobraríamos ali o novelo da minha avó Chica, mas não tivemos sorte. Soubemos que só lá moravam sete idosos, mas ninguém sabia que tal pessoa havia lá nascido, o que me deixa de algum modo triste.
Na perspectiva de podermos beber um café dirigimo-nos ao Monte das Figueiras ali perto onde entabulámos conversa com uma simpática habitante que possuía uma minúscula taberna, onde soubemos então noticias de outros parentes, que há muito partidos, ainda constavam do rol das memórias de Dona Lídia que nos indicou o caminho para Corte de Cobres, onde parámos para beber o nosso adiado café.
Aqui decidimos apesar da perigosidade do percurso, fazer o caminho de volta por terra batida e enlameada, o que de certeza foi o que minha avó Chica fez quando partiu de Vale de Camelos para vir ceifar a Entradas e aí se deixar enfeitiçar por um tal de Amândio Santiago que viria a ser o único avô que não cheguei a conhecer.
Atravessámos a Ribeira de Cobres que levava alguma altura de água, depois foi galgar aqueles cerros por trilhos onde ninguém passa desde há muito.
Logo no bico do primeiro cerro deparamo-nos com um casal de perdizes, mais á frente outro e depois outro, e assim foi por alguns quilómetros.
Abetarda ( otistarda), a grande ave da planicíe - chega a pesar mais de 20 Kg. a colónia Entradense ultrapassa os 1000 individuos.
Ao passarmos por um campo de ervilhas, temos o privilégio de assistir ao lento despegue terreno e ao apressado bater das enormes asas das maiores aves da planície: as abetardas.
Regressados a Entradas, fico com a certeza que fiz feliz minha mãe que por acaso passa por aqui agora mesmo e me continua a falar desses parentes de que até agora nunca tinha ouvido falar.
Hoje é Domingo. Lá fora a chuva cai cada vez com mais intensidade. Resta-me escrevinhar estes episódios em forma de partilha alentejana com quem me lê, mas acima de tudo, de deixar aqui (especialmente aos meus) e quem sabe se a quem ainda não nasceu pistas suficientes para que possa desenrolar o novelo dessa caminhada que é a vida, da qual só sabemos para onde vamos, se soubermos de onde vimos.
5 Comments:
Não sabia que havia abetardas em território português. Pensei que só na estremedura vizinha...
Pois é, amigo, a chuva também me lixou o conta-Km. No próximo são 3 dias com o feriado, mas como tenho campeonato distrital de patinagem do meu rapaz do meio, vou estar pendurado outra vez...
Napoleão vivi a dua descrição como se os tivesse acompanhado. Os nosso meio século de vida com mais uns pózinhos começa a ver a estrada de outra forma...
Não me digas que não passaste pelo Val da Roça e pelo Chaparro dos Pernas?
É o caminho mais rectilineo da Corte Cobres para Entradas e com maior diversidade paisagística.
Ainda bem que choveu. O que perdeste de atleta recuperaste em escritor.
Ficou um enigma; quem eram os outros dois ocupantes da TT?
Um abraço.
muito boa a perspectiva na primeira foto.
delicioso o álbum de rodrigo leão.
recomendo a faixa 7 do álbum Alma Mater. Pásion
Bem aja!
O texto só "peca" por demasiado extenso. Se fizesses um livro seleccionando os teus melhores blogs dava cá um calhamaço de aventuras que só visto.
Um abraço
P.S. - estou à espera do teu próximo blog para eu "atacar" se fôr caso disso, é claro
Olá
Eu tenho duas casas em Vale De Camelos! Vou lá bastante frequentemente em ferias. O meu Avô nasceu lá, bem como os seus ascendentes.
Se me deres alguma informação sobre a tua avó e isso é bem possível que o meu avô conheça visto que não é um monte grande. Em relação á ave que referiste, eu vou caçar algumas vezes lá com o meu pai e ainda não ouvi falar sobre ela naquela zona (mas eide perguntar assim que puder, se alguém que percebe disso são os caçadores locais)
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