Taberna - A Cavalariça
Não sei quantas vezes me fiz à estrada só para ali poder estar. Não sei que estranha força era aquela que me empurrava naquela direcção, até porque muitas das vezes quando aí chegado nem gostava de lá estar, outras… nem queria de lá sair!
Não sei que impulso era aquele que me levava a partir, só para poder de lá abalar.
Falo-vos de um dos santuários da minha vida – a taberna “ A Cavalariça” em Entradas.
Tenho seis anos, entro a medo na Taberna do Madeira. Minha prima Zé (mulher do taberneiro) carrega cântaros de água que há-de misturar com lixívia de modo a expurgar o cheiro a homem, vinho e tabaco acumulados dos dia e noite anteriores.
Não sei que impulso era aquele que me levava a partir, só para poder de lá abalar.
Falo-vos de um dos santuários da minha vida – a taberna “ A Cavalariça” em Entradas.
Tenho seis anos, entro a medo na Taberna do Madeira. Minha prima Zé (mulher do taberneiro) carrega cântaros de água que há-de misturar com lixívia de modo a expurgar o cheiro a homem, vinho e tabaco acumulados dos dia e noite anteriores.
Cantando a moda
Lava incessantemente o chão de cimento, limpando mesas, bancos e balcão.Arruma meticulosamente as garrafinhas que hão-de mais à noite andar de mesa em mesa, alinha os copos de vidro grosso que mais tarde serão emborcados vezes sem conta até que uma das vozes se solte, não demorando muito que outra e depois outras (da mesma ou doutra mesa) se lhe juntem num ritual antigo de espantar os males em forma de cante. Como se de repente todo um universo fosse um enorme e eterno abraço; forma única de sentir o troar das vozes que desenham melopeias arabescas vindas do mais profundo das nossas vísceras. Mas isso só acontecerá lá mais para a noite!
Agora são onze horas da manhã de um dia de Verão; dum Verão escaldante do início dos anos sessenta. Venho pedir qualquer coisa para comer desculpando-me com o facto de não ter ninguém em casa. Minha prima não engole a patranha mas não me recusa de comer.
Fico por ali na brincadeira com um carrinho de brinquedo que achei em cima duma mesa, mas que logo o seu recém-chegado proprietário reclama posse. Acho que não lho devo dar e envolvemo-nos numa luta fratricida só separada pelo par de tabefes distribuídos a um e a outro de forma salomónica, acompanhados do respectivo ralhete e ainda a promessa de relato alterado (para pior) do acontecimento junto dos nossos pais, o que faz adivinhar mais pancadaria.
Conto este episódio para lhe juntar o cheiro matinal destes estabelecimentos, que sem ser um cheiro dos mais agradáveis, é à lembrança olfactiva que vou buscar muitas das imagens e memórias que me perseguem.
Daqui a nada começam a chegar os homens para o seu etílico ritual matinal. Juntam-se em mesas onde os camaradas são quase sempre os mesmos. Sacam das navalhas e de um ou outro minúsculo pedaço de conduto que com os demais repartem, e há-de fazer de mata-borrão ao vinho que entornarão nesta sessão matinal.
As conversas giram em volta da interminável crise em que a região está mergulhada há gerações. Apagam-se, afagam-se ou afogam-se as mágoas consoante o estado de descrença de cada um. Fala-se da inevitável partida de mais uma família inteira “ à procura duma vida boa, que por cá buscam e não encontram” mote este, que será inevitavelmente cantado quando a noite se fizer verdadeiramente noite, e das gargantas se soltar o grito dilacerante do cante da terra.
Esta é agora a taberna do Madeira, que já foi do Manel do Carmo (este, taberneiro e acordeonista de ocasião), há-de ser ainda do Santiago, da Ti Aurora e por fim: do Pardal, altura em que foi baptizada de A Cavalariça e também altura em que regresso a Entradas (depois dum interregno de mais de 30 anos) para de novo ter com este espaço uma relação de profunda fraternidade.
É aqui que reencontro este meu amigo de infância atrás do balcão daquele que foi um dos espaços que marcou indelevelmente a minha infantil existência. Mais de trinta anos passados o espaço continua igual. O mesmo chão de cimento. O mesmo balcão de fórmica com o tampo vermelho. A mesma mobília. Aqui parece que nada mudou.
Aspecto da Cavalariça em 1998
Exceptuando o emparedamento duma porta que dava acesso à habitação tudo continua igual, como se eu tivesse abalado a semana passada, só que agora em vez de jogar ao arraiol com o Pardal este serve os mesmos minúsculos copos de vinho que a minha prima servia.
É com estes detalhes que me espanto. O Pardal denota uma genuína alegria no nosso reencontro e relata logo ali algumas das nossas proezas de gaiatos.
Sou completamente absorvido por um turbilhão de memórias, que me fazem miraculosamente recuar no tempo, com a inevitável ajuda do cheiro que as coisas ainda preservam.
Luis Fernando e Pereirinha (1998) dois indefectiveis da Cavalariça.
Dou de repente comigo a pensar no dia em que estreei o meu primeiro par de botas feitas por mestre Mariano. Lembro-me perfeitamente dele me segurar o pé descalço em cima dum papelão e com um lápis moldar em forma de desenho o meu pé de petiz.Tenho memória de as haver previamente provado, e depois, em determinado e ansiado dia de as ter ido buscar. Regressei a casa com elas calçadas e fazer um inusitado barulho por via da carrada de cardas que meu pai havia mandado colocar, na esperança de que estas durassem no mínimo até o pé crescer e não caber naquele que foi o meu primeiro par de botas.
Sou chamado “à terra” pelo Pardal para o inevitável jogo do “ adivinha quem é este” posto a circular junto dos presentes.
A maralha cliente olha-me com alguma curiosidade e começa a aventar palpites que têm sempre a ver com compartimentação genética que existe nesta e noutras terras.
Diz um: a boca é dos Miras, pista esta que faz com que um dos convivas avente um nome que por acaso não é o meu, mas sim, do meu irmão. É a altura do Pardal desfazer o novelo genético e desvendar a minha identidade. Retomam então os cumprimentos e o inevitável interrogatório acerca da família, procurando matar uma natural curiosidade.
Sinto-me bem aqui. Dou comigo a pensar!
Estes reencontros são sempre regados e se não nos precavemos, acabamos “com as botas molhadas”, como se diz por aqui. É claro que “molhei as botas”.
Por essa altura, a Cavalariça ainda não se tinha transformado no célebre restaurante que hoje é. É uma taberna ancestral que o Pardal compenetrado no seu papel de taberneiro cumpre na perfeição, enquanto que Maria João se ocupa daquilo que a distingue e há-de distinguir ao longo dos tempos, ou seja: um dedo culinário a roçar a genialidade.
A Cavalariça é por assim dizer, a sala de visitas de Entradas. Aqui aportam Entradenses e forasteiros dos arredores ou de um pouco mais longe, à procura dos afamados petiscos de fim-de-semana, comidos na mesmíssima sala onde são confeccionados e onde em mesas de correr os convivas se vão sentando à medida que vão chegando.
É inevitável que se cante!
Vem gente cantarrista de Castro e Aljustrel a que se lhes junta o pessoal de Entradas, e de repente há todo um Alentejo de emoção no ressoar das vozes que invadem a Cavalariça.
Este foi para mim dos melhores tempos que Entradas viveu nos anos mais recentes, e como em todos os ciclos, este teve o seu tempo e dele resta uma memória boa em que tive a felicidade de estar presente em muitos desses inapagáveis momentos.
Entretanto a Taberna foi acrescentada tendo sido feita uma sala de refeições onde era um antigo palheiro. Sala aconchegada, onde se come muito bem e em dias de inspiração: divinalmente.
Para minha tristeza e a de muitos Entradenses, a Cavalariça (taberna), depois de sofrer obras de remodelação fechou.
Bem sei que quem “ está no convento é que sabe o que lá vai dentro”, mas não posso evitar dizer que ao fechar-se a taberna, mata-se um pouco da identidade de Entradas.
Faço daqui um apelo. Nem que seja noutros moldes, mas a reabertura deste espaço seria uma mais valia para Entradas, e quem sabe se o inicio de um novo ciclo, agora que Entradas começa a ser terra de vinho e um espaço centenário como é a Cavalariça bem podia ser o santuário onde desembocam todas as castas, ou seja: um espaço de venda e prova desses néctares que nas redondezas se produzem; isto sem nunca descurar a vocação de taberna desta casa, até porque sem ela, este filme não tem graça nenhuma.
E como sempre disse ao Pardal: Este filme só com actores de “papel”, não funciona, os figurantes aqui, têm reservado para si o “papel principal”.
18 Comments:
Nada será como dantes! jamé!
Deixa lá a saudade!
C`est la vie!
Aturar bêbados não é fácil!
Amigo manel,
Nem eu quero que seja como dantes, até porque, não se deve voltar ao local onde fomos felizes.
Este é apenas um testemunho escrito, que se me vai um destes dias varrer da memória e eu gostaria de me poder lembrar das coisas pelo menos através do que vou escrevinhando.
Bem sei que aturar bêbados não é fácil...mas quem abre uma taberna, sujeita-se a que tal aconteça...embora seja possivel dar a volta a esse assunto.
Abraço-....já estou com sindrome de abstinência Entradense.
O "jamé" do ManuelAntóniotem direitos de autor!
AH! AH! AH! AH! AH!
Quem me dera ter conhecido a Cavalariça desses tempos. Se a açorda de fraca é um manjar dos deuses, faço ideia das iguarias que se cozinhariam por aí...
Napi,
Na semana passada, numa das minhas actividades normais de auditorias - a uma empresa do ramo da construção civil - depois de passar pelo sua sede (no Lagoas ParK), é da praxe que a auditoria seja no terreno, e sendo de contrução civil, aí está um obra..., onde? - No Alentejo (para mim é sempre uma alegria..). Bom, como era só de manhã, o cliente achou gentil convidar-nos para almoçar num sitio fantástico...com comida fantástica...Onde? Onde? Na Cavalariça...Confrontado com essa realidade aí fui eu como convidado à minha terra (materna e paterna) e onde fui parido e de facto para além dos todos os encantos fui supreendido com as obras da taberna que era da minha tia (foi sempre assim que a conheci)..quanto ao resto é a vida...também tenho pena, principalmente dos copos pequenos e das pequenas maças que acompanhavam o "copo". Até breve!! Primo Luis
Pois é Napoleão, a tradição já nõa é o que era. Tens razão quando dizes que vamos perdendo a nossa memória colectiva, nos últimos tempos e em várias áreas da vida social aqui de Entradas, tal facto tem -se verificado mais do que o desejável. Mas que podemos nós fazer? Contra factos não há argumentos.
Os figurantes mesmo de papel, não se identificam com o que de bom aqui havia.
Neste e noutros casos resta-nos recordar o que de bom existiu...
Um bem haja à Srª. Aurora, nem imaginas quantas vezes essa mulher me vem à memória, chego a ter saudades dela.
Cumprimentos desta entradense.
O bloguista anterior deve ser mesmo entradense convicto, ferrenho quase que consegui sentir o mesmo que ele, em relação à Dª. Aurora.
É a vida!
São estas pérolas que pelo país vão fechando, convertendo-se a uma modernidade simétrica. Não tarda que a cavalariça dessa tua bonita terra seja substituida por qualquer mac'donalds.
Depois, quando o nosso património fisico e cultural estiver completamente arrasado, torceremos a orelha, mas esta, nem pinga de sangue há-de deitar.
Não sou alentejana, mas na minha Beira Baixa, passa-se precisamente o mesmo.
Parabéns pelo blogue. Nota-se o amor e a preocupação com que borda as suas frases.
Helena Cabral - Escalos de Baixo
Conheci esta taberna por intermédio do autor do blogue, meu amigo Napoleão Mira, bebemos lá muitas vezes e era lá que ele me levava sempre que ia ter com ele a Entradas. Já não vou a Entradas há algum tempo e soube agora que A Cavalariça taberna fechou, mas que o restaurante continua aberto e ao que sei continua a comer-se bem. Ao menos valha-nos isso...mas é uma lástima aquele espaço ter fechado.
pode ser que um dia destes volte a abrir.
J. A.
Havendo um esforço de grupo, o mesmo que contrubuiu para a sua implementação enquanto tal" Cavalariça", sim porque foi graças a um grupo de amigos obstinados que o " Pardal" deu asas àquele projecto tão partilhado.Do que conheço, foi a persistência dos amigos que o levaram a "aceitar"tal coisa, e em boa hora, porque era ali que toda agente se sentia em casa.
Napoleão já por duas vezes escrevi um pequeno comentário que possívelmente por meu déficit na utilização das TICs se foi ao ar. O que falas da Cavalariça também me faz saudades e remete para tempos tão longíquos como aqueles em bricávamos juntos a fazer casinhas e se cimentou uma amizade daquelas que não dá para ser perceptível a terceiros pela ausência de uma convivência, que na realidade não existe no dia a dia de hoje, mas que está guardada no armazém da verdadeira amizade que se cria na infância e que o tempo e as nossas diversas formas de vida não conseguem apagar. Também tenho saúdades, das botas feitas na oficina do Mestre Mariano, que era moço da idade do meu pai, e onde trabalhavam tantos sapateiros cujo nome não vou citar para não correr o risco de ser injusto esquecendo algum que não merece ser esquecido.
No tempo em que a taberna era do António Madeira e Marijé Algarvio, guardo a memória das pequenas tabletes de chocolate com um bonequinho a que chamávamos ; surpresas e umas broazinhas muito saborosas compradas pelo meu pai para me meter no sapatinho guardado debaixo da chaminé ao lado da mesinha com o candeeiro a petróleo que me iluminava a sebenta da escola, onde fazia os meus trabalhos de casa.
Tmbém me lembro dos caçadores que vinham de Lisboa com o Artur Carvalho e outros entradenses como o Manel Madeira e O Trindade e que traziam cartuchos carregados de origem,bem como dos carros em que se faziam transportar, fazendo com nessa altura do ano fosse possível ver cinco ou seis automóveis nas ruas de Entradas.Os molhos de perdizes,lebres,coelhos e outras peças de caça espalhadas pelo chão da taberna com os cães dos respectivos donos deitados a seu lado também, são imagens que provávelmente nunca mais se irão repetir.
Falando de tempos mais recentes ainda sinto um aperto no peito quando me lembro do sr: Luís Chaves, da Sra. Aurora, do Franco do Manel Rodrigues e tantos outros nossos amigos com quem convivemos e nos deixaram saúdades.
A situação actual merece o meu respeito e compreensão pelos caminhos que a própria vida de cada um trilha.Continuo a gostar muito do Luís da Maria João e da Cavalariça mesmo fechada.
Quem sabe se daqui a alguns anitos alguém irá ter saúdades da Taberna do sr. Pedro Soares?
Tenho a impressão que mais uma vez não consegui fazer passar o meu comentário.
Mas como se pode ter saudades de uma coisa que nem sequer existe?
Até eu já conheço a Cavalariça restaurante, quando há uns meses fui convidada pelo pulanito para degustar uma fantástica açorda de fraca. Deu para perceber que o lugar era muito bom e adivinhar as maravilhosas histórias que aquelas paredes poderiam contar se por acaso falassem.
"Os que esqueceram o passado estão condenados a revivê-lo"- Jorge Santayana - filósofo espanhol, citado por Miguel Torga em todos os volumes do seu "Diário"
Meti água a frase citada no anterior comentário consta no livro "Alentejo é Sangue" de Antunes da Silva e está escrita assim: "Os que não se lembram do passado estão condenados a revivê-lo - Santayana"
No "Diário" de Miguel Torga a frase é a seguinte "Chaque jour nos laissons une partie de nous-mêmes au chemin - Amiel" só não sei se se trata de Denys Amiel dramaturgo francês do sec. XX ou de Henri Frederic Amiel, poeta, escritor e filósofo suíço do sec. XIX, O qual escreveu um "diário" que foi publicado postumamente.
Pela incorrecção aqui fic o meu pedido de desculpas
Caros amigos, são outros os tempos que correm e por incrível que pareça as dificuldades são cada vez maiores...
Se antes se bebia 1l de vinho por 200$ agora bebe-se com 2€ mas as pessoas não continuaram a beber o litro de vinho mas sim 0,5l...
Agoram experimentem a abrir uma taberna para sentir na pele o que sente o Chico ou o Carlos xaxa..
Antonio Sousa
eu sou muito bom ver o seu blog e acho que é muito útil e muito informativo, eu estou indo para compartilhar isso no meu fb com meus amigos, esperança que você vai mantê-lo,
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