O meu Encontro com o Capitão Roby
Por lá passei muitos episódios que por aqui hei-de desfiar, mas hoje quero-vos falar de um em especial: o meu encontro com o Capitão Roby.
Tinha acabado de entrar de serviço às 23.30. Depois do colega que me antecedeu me ter passado o serviço, fui como sempre dar uma volta ao bar para ver como paravam as modas.
Naquela noite de Inverno o ambiente estava inusitadamente vivo. Clientes conhecidos que ali faziam poiso diário em animada cavaqueira com o barman de serviço, mais ao fundo na sala, pequenos grupos de estrangeiros bebericando cálices de porto e outras especialidades cá da "tuga" preenchiam a totalidade dos assentos disponíveis, mas ao canto do balcão pontuava uma cara nova, que pelo tom da voz ou pela sua minimal gaguez faziam com que a minha atenção fosse aprisionada por este novo e intrigante personagem, que por natureza ou insistência do discurso teimava em protagonizar a noite.
O individuo era emproado, vestia sobriamente e conversava fluentemente em várias línguas e sobre qualquer assunto, o que por razões (que só a ciência poderá explicar) atraía a atenção do mulherio de uma forma melosamente subtil.
Num tempo em que os telemóveis ainda eram ficção científica, os clientes eram chamados ao telefone pela recepção. Recordo que muitas dessas chamadas eram dirigidos a este enigmático personagem e como eu atendia a maioria delas, estranhava serem sempre mulheres que por ele demandavam.
Comecei a estranhar o tom das imperceptíveis conversas, o que me levou a cometer um acto que não devia revelar; passei a escutar parte desses diálogos na central telefónica onde abria um canal de escuta.
Recordo que as conversas tinham sempre um carácter apaixonado por parte de quem telefonava, sendo que o nosso interlocutor esbanjava charme da mesma forma com generosamente me gratificava, ou seja: aos montes.
Jorge Verissímo Monteiro, era o nome deste furacão que por ali se instalou nesse Inverno de há mais de 25 anos. Por essa altura teria uns 35 anos e um porte distinto, altivo, sendo o centro das atenções por onde quer que passasse, e neste particular para atrair atenções e admirações apresentava-se como adido naval da embaixada de Portugal em Estocolmo na Suécia,de onde era suposto ter acabado de chegar.
Era este o papel que representava, era esta a personagem que encarnava, não sem que, pelo menos a mim, me deixar sempre de pulga atrás da orelha, já que algumas das suas atitudes não eram condizentes com a do posto que se gabava de possuir.
De qualquer modo o nosso adido naval era um poço de generosidade, mandando-me servir copos dos mais finos maltes, até chegando a oferecer-me garrafas de Chivas Regal, um néctar caríssimo à altura.
Jorge, possuía um Opel Ascona (ou Manta, já não me recordo bem) verde onde me deixava dar umas voltas, o que para mim era um acto de extrema consideração. Um dia perguntou-me se gostava de ver uns filmes de “mariolice”. Respondi que sim. Este subiu ao seu quarto e trouxe-me uma máquina de projectar com uns filmes mudos a que na minha terra hoje chamam “cassetes de chumbança”. Estas mini-bobines eram o regalo das nossas noites. A estas sessões privadas assistia eu, o Serras (meu colega de turno) o velho Amadeu (chefe de bar já falecido) a Tita, o Engenheiro das Couves (clientes residentes do hotel) e demais clientes que entretanto fossem chegando e em quem nós depositássemos confiança.
Fizemos assim, muitas sessões de cinema "late night", tendo os lençóis do hotel servido de ecrã, de modo a visualizarmos todas as bobines que o Jorge Verissímo nos havia emprestado.
A vida deste personagem era a cada dia que passava mais intrigante, e muita da bota deixou de bater com a perdigota, especialmente quando começou a dizer a alguns clientes que pretendia adquirir o hotel, a outros que já estava em negociações e a outros ainda que o negócio já estava concluído.
Neste entrementes a vida do adido namoradeiro começa a levantar sérias suspeitas, especialmente no dia em que a Tita e um outro cliente do Hotel de seu nome Amado Estriga, foram convidados pelo nosso protagonista a visitar um apartamento na Av. Columbano Bordalo Pinheiro, onde pontuava uma senhora desconhecida que vestia de cabedal negro da cabeça aos pés, maquilhagem a condizer e na mão uma trela com que segurava dois poderosos cães de raça doberman aquando da altura em que esta lhes franqueou a porta.
O quadro foi-me descrito como insólito, algo temeroso e sobretudo desconfortável, só descansando quando dali se puderam pirar.
Entretanto já circulavam algumas manigâncias do nosso Jorge, com uma ou outra mulher a meter a boca no trombone.
Estava na altura de sair de cena!
Não me recordo se saiu de fininho sem pagar a conta, mas estou em crer que nada ficou a dever.
Regressou fugazmente noutras alturas mas já sem a pose inicial. Pela minha parte tinha por ele a admiração que tenho pelos personagens que do “ Planeta Agostini” descem á terra, vestem uma ou várias peles e passeiam-se pela vida, ostentando a personagem encarnada que por sua vez cilindra umas quantas inesperadas vidas, que afinal não passam de danos colaterais deste turbilhão que a determinada altura já só pede que o parem, pois por si só, já o não consegue fazer.
Uma noite Jorge telefonou-me a marcar um quarto, posteriormente voltou a telefonar e a desmarcar. Por portas e travessas, ou mesmo coincidência, soube que estava hospedado no Hotel Jorge V.
Nessa mesma noite fui abordado por dois inspectores da judiciária que o procuravam.
Embora sabendo onde este se encontrava, disse-lhes que de facto tinha tido uma reserva para aquele dia, mas que entretanto havia cancelado, omitindo deliberadamente a preciosa informação que possuía.
Passados dois dias sou confrontado com a notícia de 1ª página com a prisão do foragido “Capitão Roby” nesta unidade hoteleira.
Tinha nascido o mito que haveria de perdurar por mais de uma década, cujas façanhas foram descritas em livros e seriados de TV, mas que não têm o sabor e o élan de com ele ter compartilhado a vertigem dos abismos que este protagonizou.