Fernando Cruz - O Chupa
Quando nos cruzámos nos corredores da vida, teria eu, não mais de sete anos. O acentuado sotaque alentejano era motivo de chacota entre a maralha da mesma igualha que desaguava em Lisboa proveniente de outras interioridades portuguesas, mas que este novo amigo respeitava e tanto quanto me lembro até gostava.
Por causa de um jogo de berlinde desentendemo-nos e guerreámos. Lembro-me dessa luta motivada numa unha desmesuradamente crescida do dedo mindinho, que fazia com que o seu palmo se agigantasse, e assim, conseguisse atirar aos “bilas“ de uma distância que me parecia mais do que injusta, especialmente no jogo das três covinhas.
Numa dessas recusas em entregar uma “cebola” que valia nada mais nada menos que 10 “bilas“ de plástico, enrolámo-nos numa briga sem tréguas, que ainda recordamos aquando dos nossos ocasionais encontros.
Desse quase mortal combate, nasceu uma sólida amizade que perdura há mais de quarenta anos e apesar de passarem anos sem nos vermos, reatamos sempre a conversa onde a havíamos deixado, sem darmos conta de que por vezes, o tempo corre muito mais depressa do que aquilo que pensamos e se há pouco falávamos de dez ou vinte anos atrás, agora, falamos de quatro respeitáveis e assustadoras épocas, o que muda invariavelmente o teor das nossas trocas emotivas.
Fernando Manuel Cardoso da Cruz. Para mim o “ Chupa”.
A alcunha com que o rotulei, assentava-lhe como uma luva, já que os seus traços fisionómicos denunciavam duas enormes covas no rosto que lhe conferiam um ar assim a dar para o cadavérico.
Tínhamos o nosso quartel general montado no quintal do Mestre Cruz seu pai, num amplo espaço subterrâneo por nós sorrateiramente escavado, onde penetrávamos por uma entrada secreta disfarçada dentro da casota das ferramentas e onde guardávamos o nosso espólio, de que fazia parte entre outros mútuos pertences, a colecção de bonecos da bola, a que só faltava o “ número da bola” Espírito Santo, jogador do Braga, para ganharmos a tão almejada bola de “catchú”, caso conseguíssemos completar a colecção, o que veio a acontecer, quando recrutámos temporariamente o Luís, filho do taberneiro, onde adquiríamos os ditos bonecos da bola, que se encarregou de convencer o pai a arrebatar as últimas dezenas de rebuçados e por consequência “ o número da bola”.
Major Alvega e Kit Carson- dois dos nossos heróis
Os livros do Kit Carson e do Major Alvega eram guardados e lidos religiosamente à luz da vela no nosso “ bunker” a que também passou a ter acesso o Luís, que para além da bola de couro, também trouxe a sua colecção de “ bilas” onde pontuavam as cebolas, “meias luas”, “olhos de boi”, “mapas mundo” e o tão almejado “abafador”, admirável peça, que permitia a quem a possuísse, “ abafar” todos os berlindes que estivessem no terreno de jogo.
Uma mão cheia de "bilas" - O equivalente a um poder infinito
Com a nossa nova bola de “ catchú” decidimos fazer um clube de futebol.
De modo a arranjarmos dinheiro para equipamentos, decidimos montar um circo com restos de cenários da televisão, (RTP) que um nosso amigo desviava de casa e que emprestou ao espaço do espectáculo um aspecto impressionante e de que justamente nos orgulhávamos.
Eu fazia de apresentador e tinha um número de palhaço. O Chupa fazia uns contorcionismos estranhos que resultava num dos momentos mais aplaudidos. O Luís e duas meninas entretanto aderentes à trupe de saltimbancos que passámos a ser, faziam o que podiam, mas pelo riso da assistência, deviam de o fazer bem.
O Circo demorou algumas apresentações e com o dinheiro das entradas e peditório, em vez do clube de futebol, gastámo-lo em vinho tinto com gasosa – especialidade aparecida por aqueles tempos – e bolachas baunilha, que devorámos avidamente no nosso refúgio secreto e que resultou numa enorme bebedeira colectiva de que vos poupo os detalhes.
Entre experiências, peripécias e aventuras, gastámos toda uma juventude, só nos afastando do caminho que juntos trilhávamos, aquando do surgimento desse animal curvilíneo chamado mulher, que muda o rumo dos acontecimentos, sem nós darmos por isso.
Já não vejo o Chupa há uns bons cinco anos. Quando for a Lisboa vamos jantar os dois e continuar aquela conversa que deixámos a meio, onde ele afirmava o seu desejo partir e correr mundo, mas o mais longe que lhe ouvi dizer que tinha ido, foi a Madrid e pelo empenho que pôs no relato, mais parecia ter ido à “tongadamirongadocaboleté”, que é assim o sitio mais longínquo para os brasileiros, uma espécie de “cu de judas” para nós.
Publicado no Jornal O Campo
5 Comments:
Gosto da maneira como imortalizas os teus amigos.
Cada vez gosto mais de aqui vir,
É sempre bom recordar a nossa meninice
O "Chupa" deve estar orgulhoso do amigo que tem.
Como é que ainda te lembras dos nomes dos berlindes. Um prodigio!
Viva o Jaime Eduardo !!!
Adorei! Só acrescento - para que registado fique na imortalidade histórica - que o número da bola era o 111 "das estampas coloridas, colocadas nos seus respectivos lugares". (E, assim revelando já o meu afecto pelas minorias, fiquei eu adepto de "O Elevas Alentejano Clube de Desportos"...). António - o Magrinho.
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