O Inigualável Primo Revés
O inigualável Primo Revés
Apesar de proclamar amiudamente o provérbio: quanto mais conheço as pessoas, mais gosto dos animais, devo confessar que continuo a gostar do género humano. Que isto do adágio me sai porque tenho o coração demasiado perto da boca. Porque quando o próximo me desilude, tomo o todo pela parte. Porque fervo em quase água nenhuma. Em suma! Porque sou um ser imperfeito, como são afinal os que me rodeiam.
Sei, isso sim, que quando em paz com o resto do mundo, tendo a avaliar o próximo pelas suas qualidades e a desvalorizar-lhe os defeitos. E assim, numa tentativa de retirar de cada um aquilo que de melhor me poderá oferecer, procuro viver em harmonia com os que me circundam.
Faço este introito porque hoje ao revisitar algumas imagens do meu arquivo, dei com uma figura de que sinto genuínas saudades. Um ser humano que preenchia os meus dias alentejanos de cheiros e sons e que, com a sua partida, deixou um vazio de que não tenho esperança de voltar a ver ocupado. Falo-vos dessa personagem singular, que nós Entradenses, nos habituámos a chamar de: Primo Revés.
Isto de ser aldeão tem o seu quê de apuramento estético.
Mal a manhã raiava, ouviam-se ao longe os primeiros acordes da sinfonia de esquilas que adornavam os pescoços das cabras e ovelhas do seu pequeno rebanho. À medida que o grosso da coluna se abeirava da minha casa, era cada vez mais audível o improviso musical conduzido pelo maestro Revés, cuja batuta era o seu bordão de moiral e, com os seus solos de assobio e vozes a vários tons, colocava no caminho certo aquela pequena orquestra de ruminantes. Eu, ao postigo, saudava-o exageradamente, como se de uma personagem teatral se tratasse. E ele, em passo apressado, retribuía a minha saudação retirando da cabeça a boina que a cobria, num gesto sempre repetido a cada conterrâneo que com ele se cruzasse naquele rito matinal. Depois, tanto ele, como as criaturas de quatro patas perdiam-se-me da vista na volta do caminho. A peça musical pelo rebanho tocada esvaecia-se na distância e eu, fazia destes momentos, raridades contemplativas para a minha coleção de memórias.
Encontrávamo-nos muitas vezes na saudosa Cavalariça, esse templo Entradense de que sinto imorredoiras saudades. Aí, e quando o grão já lhe fazia pender a asa, tinha por hábito encontrar laços familiares ou consanguíneos em praticamente tudo o que mexesse.
Quando a mim se referia, dizia arregaçando a manga e batendo com vigor no antebraço: — Nestas veias corre o sangue dos Miras e este, aqui (aludindo com orgulho à minha pessoa!) é sangue do meu sangue!
Bebia mais um copo e, nessa busca incessante de ligações familiares, lá encontrava noutro conviva mais um vínculo por interposto casamento, por conjugações familiares cujo grau de parentesco, mais parecia medida de temperatura estival.
Certo dia, aí, nesse templo tabernal (por ora fechado!) estando eu com o meu amigo Raul Arco, Primo Revés aparece e cumprimenta-me efusivamente: — Olha o meu primo Napoleão e o meu primo Raul. Pardal (dirigindo-se ao taberneiro!) avie lá aí uma rodada aqui para mim e para os meus primos — E assim o meu amigo Raul, passou a pertencer à extensíssima prole deste que parecia ter como missão terrena juntar todos os homens e mulheres numa monumental família.
Nunca mais o Raul foi Raul. A partir desse dia passou a ser primo Raul para aqui, primo Raul para ali, primo Raul para o que desse e viesse.
Numa das muitas noites de inverno que ali passámos, noite essa, em que o frio perpassava as grossas paredes da ancestral taberna, o vento assobiava e a chuva ameaçava desabar em esgarrões, vi entrar venda adentro a figura que homenageio neste escrito.
— Ainda bem que apareceu. Nem é tarde nem é cedo. Diga lá, Primo Revés, de que lado da família é que aqui o Raul é seu primo? — questionou Pardal, o pertinente taberneiro que não perdia oportunidade de meter farpa em lombeira alheia. Primo Revés não se fez rogado. E, logo ali, desenrolou o fio da meada, satisfazendo a curiosidade de quem o quisesse ouvir.
— Então se o Raul é amigo do primo Napoleão, se é do Algarve, é meu e também seu primo por parte... da praia!
E assim, nesta desconcertante e ingénua sinceridade, arranjava o primo de todos nós, maneira de chamar ao seio da sua linhagem alguém que a ela jamais pensara pertencer.
Primo Revés também tinha outra particularidade. Oferecia borregos a toda a gente, mas que se saiba, ninguém foi contemplado com a oferta sempre repetida, mas nunca concretizada.
Eu, particularmente, mesmo que mo oferecesse teria de o dar a outra pessoa, já que não é bicho que aprecio no prato. Prefiro vê-lo correr nos verdes prados, a obedecer às ordens assobiadas do mestre pastor, esse mesmo homem que continua a povoar a minha lembrança e que, com a sua partida, deixou mais pobre a avenida dos meus pressentimentos.
1 Comments:
Grande homem e grande amigo,saudades imensas.
Obrigada Napoleão por partilhares as tuas recordações deste nosso primo Revés.
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