Baptismo de Fogo
Era no tempo do cinzentismo, altura em que Portugal era um território a preto e branco, uma espécie de país adiado, à espera que um velho senil tombasse duma cadeira e, com esse tombo, caísse também um regime que durante décadas e décadas cerceou a vontade e os sonhos de milhares de portugueses.
Esta pequena história relata o dia em que um petiz de nove anos foi obrigado a frequentar a catequese.
De igrejas não percebia nada, só sabia que gostava de subir à torre sineira da igreja matriz lá da sua aldeia para ouvir o barulho ensurdecedor das badaladas que anunciavam mais das vezes a partida de um dos seus e, também, para ver se conseguia vislumbrar Lisboa que sempre lhe haviam jurado se situar um pouco para lá das cercanias da terra, ou seja, na lonjura possível da sua jurisdição visual; mas mesmo semi-cerrando os olhos, colocando a mão em pala à moda dos índios, nem assim conseguia visualizar a grande metrópole, coisa que o fazia desconfiar que afinal a grande cidade seria bastante mais longe do que lhe diziam. Até que um dia, também ele teve de abandonar o seu território de afeição e na companhia dos seus, demandar o futuro, esse porvir chamado: Lisboa.
Já na capital, não percebia porque tinha de (para além da escola), assistir aquela beata lengalenga que, apesar da tenra idade, se lhe assemelhava mais a patranha inventada do que a uma história vivida, sobretudo, aquela do deus estar em todo o lado; era assim uma espécie de Belmiro de Azevedo dos nossos dias, mas com um negócio distinto!
Essas sessões religioso-educativas chamadas de catequese (que nunca soube o que queria dizer!) tinham lugar numa dependência da igreja da Charneca do Lumiar.
Padre Cristiano era o educador espiritual e Antonino, o sacristão, a sua sombra e seu ajudante.
Numas dessas secantes sessões, padre Cristiano (talvez por descargo de consciência!) perguntou se havia algum menino na sala que não tivesse sido baptizado e, quem o não fosse, que pusesse a dedo no ar.
Naquela pequena sala deveriam de estar umas duas dezenas de rapazes, o pequeno alentejano à frente sentado, era o único com o dedito no ar.
«Ai que o menino é mouro!» Clamou Antonino elevando as mãos aos céus, num gesto em que implorava clemência ao concorrente do Belmiro.
Perante tão inesperado acontecimento, Cristiano nem hesitou, agarrou no gaiato pelo braço prendendo-o de modo a que este não se safasse e pediu a Antonino que fosse ver se a Idalina das limpezas estava por perto.
Padre Cristiano chispava pelos olhos, e aos cantos da boca acumulava-se uma certa gosma branca e raivosa que o clérigo não fazia questão de disfarçar.
O “pequeno mouro”( por assim dizer!), para além de confuso, estava cada vez mais assustado, até porque, aquele homem de negro vestido continuava a acusá-lo de infiel, de impuro e de outros impronunciáveis adjectivos que um rapazito de nove anos teria muita dificuldade em descodificar.
Decorria o mês de Maio de 1965 e também nesse dia vinte e nove desse mês e desse ano corria lentamente o tempo de espera pelo Antonino e pela Idalina que teimavam em não aparecer.
Talvez tenha passado uma hora, tempo que lhe pareceu uma eternidade quando Antonino entrou na sacristia anunciando que não conseguia encontrar a Idalina.
«Não faz mal!» Ripostou padre Cristiano
«Serás tu o padrinho e terás como comadre, nossa senhora de Fátima»
Encaminharam-se os três para a pia baptismal. Numa cerimónia absolutamente surreal e ao mesmo tempo celestial dada a importância da excelsa figura "convidada" para madrinha. Lá lhe despejaram uma concha de água sobre a cabeça enquanto padre Cristiano vestido a preceito oficinal tecia uma imperceptível ladainha que deveria de ter a ver com a ocasião.
O menino sentiu-se impotente para ripostar. Mas ripostar o quê, se nada lhe havia sido perguntado! Para além disso, não ser baptizado deveria ser uma coisa contra-natura e se calhar quem estava em falta era ele.
Aquilo de não ser baptizado, se calhar, era como ser canhoto, “defeito” de que também era portador e que a professora tentava corrigir à força de reguada ou mesmo atando-lhe às costas a sua manita “defeituosa”.
O Alentejanito sentia-se desgostoso, triste e perdido. Sentia dolorosas e doentias saudades da sua aldeia. Aí ninguém o obrigava a ouvir estórias de pessoas com asas, aparentemente sem sexo e demasiado brancas para o seu gosto.
Aí ninguém lhe dizia com que mão havia de escrever, ou de comer, ou de atirar pedras aos pássaros e aos outros moços, coisa que fazia parte do crescimento de qualquer menino aldeão, coisa que a si mesmo e em solene promessa, jurara ser!
Os anos passam. A memória perdura!
No outro dia andei a fazer uma busca arqueológica em casa de meus pais e de repente fui confrontado com o documento que atesta verdade histórica desta crónica escrita assim de um só fôlego e que me trouxe à memória um tempo de que não guardo gratas recordações.
Ah…quem era o menino?
Como diria o Tony Carreira: O menino era eu!
7 Comments:
Lurdes Salgueiro,
revejo-me em tudo que relatas.... tambem eu sofri imenso com o padre da minha terra,das catequistas que insistiam em ensinar não sei o quê... enfim!. adorei. Obrigado
Eheheheheheh,Nap!
Mouro e canhoto como o ex- DiMaria(Angel)e o Coentrão(ex-bimbo)...
E não foste crismado?
Sorte a tua!Aí era à chapada e sem diploma:-)
Haja saúde!
jm
Tu ainda és menino.
Um bocadinho mais manhoso, mas sempre menino...
E não fales com esse gajo aí em cima que me roubou uma mochila....
E a festa...Não houve festa?
Que estranho...hoje ningém dispensa a festa...os Bancos até emprestam o dinheiro...
Estou a brincar primo, também fui batizada assim,o padrinho foi o Santo Antonio...enfim!!!
Bj
Senhor Napoleão.
Não acredite no Carneiro ,ele não é batizado.É um herege,bolchevista,apenas foi "crismado" várias fezes pelos outros meninos do coro:fintou o sistema e queimou a primeira fase.
E aquilo que ele diz ser uma mochila roubada,não é verdade!
É uma giba de cigano roubada,até agora.
João Mimoso*
*tio do Lelo Pita
O problema nem é a mochila. è as barras energéticas que o gajo já as deve ter comido todas, mais as pilhas das lanternas, os remendos das camaras de ar, o compressor, o GPS, etc....até o spray gelado milagroso para as lesões.
Quando lá chegar a mochila está vazia...
E um GPS daqueles custa alguns 300 eurios...
(Já me disseram que é o Pita que anda com ele na sua bicla nova, mas sei lá eu em quem acreditar...)
Senhor Napoleão,peço desculpa de usar o seu educado e culto blog para que me seja feita justiça,negada em "O XICLISTA"...
O problema nem são os 300 euritos.Isso com as rifas que vamos vender até ao Natal é provável que se recuperem.
O 1º prémio é uma bicicleta comprada(roubada) a um gajo de Lisboa,o 2º é um suporte para mochilas adaptável a q.q.bicla(oferecida,por falta de pagamento, por um advogado de Lisboa),o 3º é uma giba de cigano(encontrada abandonada à beira de um mau caminho vicinal)....
O problema,sim o problema, são os cogumelos(venenosos) que nasceram dentro e à volta da giba velha ,bolorenta,a cheirar a Linimento Sloan fora de prazo, que vão ser uma carga de trabalhos para quem sair a bicha e ,eventualmente,motivo de queixa crime contra quem provar ser o dono legítmo da dita,que um dia a abandonou à beira duma estrada,triste e só como se fosse um cão de cidade,mal educado, que larga bosta à porta e na roda do "jeep" de um gajo duro e insensível que é sócio do fcp e que segundo consta mora para o lado da Av. De Roma,capital da cidade da Catedral e não é Batizado,só Crismado pelos outros Escuteiros.....
P´lo Senhor João Lelo Mimoso(tio do J.Lelo Pita)
o seu representante legal
Ups!
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