No Comboio Descendente
De novo no Alfa Pendular em direcção ao sul, meu ponto cardeal favorito.
Desta vez viajo ao correr da paisagem, logo a panorâmica que me é dada a apreciar é feita de modo natural, portanto sem correr o risco de contrair um torcicolo.
Tenho cerca de duas horas para me entreter aqui na minha escrevinhação anárquica, ao jeito de tradução escrita de fotogramas flashados que me irão invadir a memória.
Gosto desta coisa do comboio. Gosto da suavidade da viagem, da amplitude das janelas que dão um ar cinemascope ao filme paisagístico que os olhos avidamente consomem.
Gosto de ter tomada para ligar o computador e mesmo que não tenha Net, tenho ferramenta para me entreter ou trabalhar durante a viagem. Gosto ainda do conforto bamboleante e silencioso em que a jornada é efectuada.
Agorinha mesmo, uma funcionária impecavelmente vestida com a sua nova farda verde limão, me perguntou se desejava pequeno almoço…penso para com os meus botões que isto é um luxo de que tenho de me aproveitar mais vezes. Recuso a sugestão, até porque estou em plano alimentar e já lá vão quatro quilitos de supérfluas gordoritas. Necessito de perder outros quatro, para que não os carregue em cima da bicicleta e depois a malta da minha equipa goze comigo quando ficar para trás na primeira dificuldade de terreno que tiver de enfrentar.
O Carneiro diz que eu a pedalar pareço o Quaresma a jogar à bola, isto porque diz que nunca tinha visto ninguém a pedalar de trivela. É o preço da originalidade Xiclista. Para além disso comparar-me com um cigano é uma honra que gostaria de merecer.
Lisboa há muito que ficou para trás. Esta manhã estava envolvida numa neblina dum cinza estanho que apenas deixava vislumbrar tenuemente os pilares da ponte sobre o grande rio, que pareciam flutuar.
A ponte vista de ângulo curioso e ambiente sebastiânico
Deixando Lisboa para trás, aparecem as construções da outra margem, onde milhares de milhares de almas vivem, sonham e labutam, numa impressionante e disciplinada rotina vivida dia após dia, ano após ano, vida após vida.
Gosto de Lisboa. Porém, viver numa grande cidade é coisa que não consta dos planos elaborados para o resto dos meus dias.
Tenho escrito aqui no Pulanito vários posts, onde Lisboa surge na plenitude da sua magia feminina. Gosto de aqui vir, mas também gosto muito de cá abalar.
Estamos agora em pleno distrito de Setúbal. A paisagem há muito que deixou de ser povoada por aglomerados betonizados aos céus erguidos, numa tentativa humana de competir com o mestre obreiro dos céus e da terra. Ainda não chegámos à grande planície onde o verde-esmeralda dos jovens trigais que agora anunciam um ciclo novo na voragem dos anos que passam, se esbate na perfeição dum azul celeste que os nossos olhos percorrem até ao infinito.
Por ora, apenas pinhais e pequenos aglomerados preenchem a tela viva deste filme em que interajo com o que se me é dado a observar tentando ao mesmo tempo transmitir aos leitores do Pulanito duma forma quase desafiante o que se passa na cabeça deste pobre viajante.
O Alfa Pendular viaja agora a 224 vertiginosos Km por hora. Chegarei a Tunes pelas 11.20 horas, numa viagem que não deve ultrapassar as 2.30 horas, o tempo suficiente para que aqui e de forma desgarrada, actualize o blogue e logo com post dos compridos, sinal de que pouquíssima gente o lê.
Arrozais de Alcácer do Sal
Passei agora Alcácer do Sal, que no serpentear do Rio Sado vai desenhando arrozais cultivados em múltiplos rectângulos alagados, onde tractores com inusitadas rodas metálicas fazem o trabalho do amanho dos terrenos tirados a régua e esquadro, que de tão lisos e simétricos, parecem ter sido aplainados por agricultor com gosto pela carpintaria.
Agora já estou em plena terra do pão. Terra onde lonjura rima com ternura e espanto rima com encanto. Estou em casa, por assim dizer!
Não sei porquê (ou se calhar sei), mas mal os meus olhos se apercebem da paisagem que é o meu território emocional, o meu coração engata outra velocidade e o seu batimento sofre repentinamente um aumento que não consigo dominar.
Já levo hora e meia de viagem, o que quer dizer que mais coisa menos coisa, dentro de uma hora estarei em Tunes minha estação terminal.
Tenho aí o meu carro. Terei de partir rapidamente para uma consulta de rotina com o meu médico de família que por coincidência será a sua última consulta, já que a partir de agora passará à qualidade de reformado.
Quero aqui deixar ao Dr.Luis Sena o meu muito obrigado em nome da minha família, pela forma com que ao longo dos anos acompanhou a nossa saúde, especialmente a minha, desde a descoberta dos malditos diabetes no ano de 2000.
Vou-lhe agradecer de viva voz o que por nós fez em todos estes anos e desejar-lhe longa vida, muita saúde e boas caçadas pelo meu Alentejo de que o Dr. Luis Sena é grande admirador.
O Alfa continua a rasgar as terras da planura. Ao longe e de quando em vez surge um monte, uma pequena aldeia de branco caiada com as suas fumegantes chaminés.
Estamos em pleno Inverno de 2009 e em muitas desses chupões estarão muitos chouriços, linguiças, presuntos ou paios ao permanente fumeiro de forma a que ganhem o inconfundível paladar das coisas da terra. Coisas essas, transmitidas de geração em geração e tanto quanto sei com pouquíssimas introduções de tecnologia de agora, conforme tenho constatado nos rituais de matança a que tenho assistido.
Viajamos agora a uma velocidade pouco alentejana: 219 Km por hora. No rectângulo da minha janela sou inundado de verde. A partir de agora o Alentejo vai ganhando cores de vida e quando a primavera chegar, será o espectáculo da metamorfose dos campos que mudam de cor de semana para semana num exercício de plástica desconcertante.
Santa Clara a Velha
Passo agora um serrado que me anuncia estarmos a entrar no reino dos Algarves. A sinuosidade do terreno acentua-se como se de um fronteira natural se tratasse. Pequenos montes, casas de serrenhos que amam tanto a serra como eu amo a planície, onde ainda é mais difícil resistir e onde a cada dia que passa, enfiados num fato de madeira, vão a enterrar muitos desses guardadores de memórias que sem terem a quem as passem, as levam consigo para a última estação do comboio da vida.
6 Comments:
Amigo Pulanito,
Sempre que me é possivel dou um salto "por aí" para ler as tuas maravilhosas crónicas deste paraíso á beira-mar plantado. Mais uma vez parabéns pela forma como o descreves em toda a sua plenitude, principalmente o "teu Alentejo".
Eu, apesar de Algarvio, adoro a forma como descreves essa bonita região, à qual penso, todos Adoramos.
Parabéns e Um Grande Abraço
Do
Cuco
Não sei se já te disse isto mas acho que deves ler alguns livros do Dr. Brito Camacho, Acho que vais gostar.Acho?| Não||| Tenho a certeza. Tu vais-te rever nesses livros. Especialmente em "Por Cerros e Vales" e nos "Quadros Alentejanos" Ele descreveu "Quadros Alentejano" andou "Por Cerros e Vales" andou "Por aí fora" não foi a caminho de Cuba (a das Antilhas)mas foi "A Caminho de África" descreveu "Gente Rústica" e "Gente Vária" e descreveu "Cenas da Vida" e dissertou sobre importantes "Questões Nacionais" etc. etc. etc.
Pelos vistos chegaste bem.
comparei-te com um génio e ainda reclamas...
Que postagem extraordinária:) Também eu já fiz tantas vezes essa viagem de comboio, e também eu me deixei sempre infectar pelo magnifico da paisagem, como se fosse algo de novo, eu, que gosto de chamar o SUL por TU, que tenho a mania que ele é todo meu... É uma viagem espantosa, uma viagem em casa.
O Entrudanças está ai não tarda, espero voltar a ver aqui uma reportagem do festival, da tua visão sempre pertinente das coisas! Um beijinho
Ola Celina,
Infelizmente esye ano não vou poder estar no Emtrudanças, já que vou estar fora do país.
Vou no entanto tentar encontrar alguém (porque não tu) que ma faça para aqui, no Pulanito dar conta desse magnifico evento que já se enraizou nas gentes da minha terra, e assim poder proporcionar aos leitores deste humilde pasquim a possibilidade de saberem o que perderam por lá não ter estado e especialmente eu.
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