quinta-feira, dezembro 06, 2012

No Ritz Club 35 Anos Depois!

Pisando as mesmas tábuas que Miss Kelly. Uma sensação deveras estranha!

Ontem, 5 de Dezembro regressei ao Ritz Club uns bons 35 anos depois de aí ter estado pela última vez.
Levei, para além de alguma da minha poesia, o texto que publiquei aqui há alguns anos e que poderão encontrar um pouco mais abaixo.
 

Pisar o mesmo palco que Miss Kelly, heroina dessa crónica, foi um momento de grande introspecção. Uma viagem no tempo que jamais ousei imaginar.

Obrigado ao Pedro, ao Helder e ao João e a todos quantos trabalharam na produção deste trabalho, em especial ao João e à Sandra, que nos receberam neste espaço de imorredoiras memórias para mim.
Muito obrigado!

O programa poderá começar a ser visto no Canal Q/Clube da Palavra no sábado dia 15/12.
Deixo aqui o texto para quem não tenha paciência para o procurar.

RITZ CLUB – A Primeira Vez

 Miss Kelly era mais ou menos assim. Pelo menos na minha imaginação!

Tinha-me mirado e remirado ao espelho vezes sem conta. Penteara e despenteara o cabelo outras tantas. Tinha a expectativa de ver refletida a imagem que há muito interiorizara.
A franja caída sobre os olhos, a tez enrugada, a gola do casaco levantada, o olho franzido mais o cigarro estrategicamente fumado pelo canto da boca, conferiam-me um ar suficientemente adulto para os meus dezasseis anos. Era a estudada estratégia para ludibriar o porteiro do Ritz Club e, finalmente subir de três em três degraus, aquele lanço de escada que me havia de catapultar para um mundo de fadistas, chulos, ladrões e prostitutas, no que se refere ao género humano e, chouriço assado, bacalhau à Brás e whisky marado no respeitante aos comes e bebes.

Apesar da notória decadência, o Ritz era um dos ex-libris de Lisboa. Quando se galgava aquela escadaria, encontrávamos à esquerda o barbeiro que zelava pelo aspecto dos proxenetas que faziam bicha pró penteado, e à direita, o restaurante e casa de fados, onde coabitavam as piores vozes de Lisboa e o melhor bacalhau à Brás da cidade branca.

Mais um lanço de escadas e abriam-se as portas do paraíso. Para quem, até ali só ouvira descrições verbais daquele espaço, estar ali e apreciar ao vivo e a cores aquela inebriante atmosfera de músicos, garçons, otários, pilantras e meretrizes, era qualquer coisa de alucinante.

Os 10$00 da entrada davam direito a duas cervejas Sagres de meio litro - rara embalagem para a época - que o empregado depositava na mesa de uma só vez contra a entrega da senha de consumo, pouco se importando se estas aqueciam com o passar do tempo.

Sentados estrategicamente a um canto esperávamos até altas horas pelo espetáculo de palco, já que o outro, o que se desenrolava na sala era por nós consumido avidamente, sem que dele perdêssemos pitada.

Na pista de baile, entre boleros e tangos tocados pela orquestra residente, logo alcunhada por nós de “Conjunto Mitra”, devido à avançada idade dos seus componentes, evoluíam mulheres de mau porte, dançando com embriagados provincianos de patilha, que dali a pouco, num qualquer cubículo de pensão manhosa com águas correntes quentes e frias, haveriam de largar nota da grossa, a troco de céleres prazeres carnais.

Depois de  terminada a série dançante e, segundo o amarelecido cardápio do espetáculo, haveríamos de assistir ainda ao número do residente casal de comediantes, quase tão velhos quanto o velho Ritz, cujos nomes se me varreram da memória, justamente a anteceder o momento da noite, de que, vezes sem conta, ouvíramos falar, e que, finalmente iríamos presenciar: o strip tease de Miss Kelly!

Quando Miss Kelly pisava as tábuas do velho Ritz, todos os olhos se dirigiam para o foco de luz branca que insidia sobre as adivinhadas formas roliças que se escondiam por debaixo do cintilante e longo vestido de lantejoulas.
O pianista do “Conjunto Mitra” acompanhado pelo contrabaixista, ilustravam o momento com acordes a propósito. Miss Kelly do alto da sua pose de femme fatale dirigia lânguidos olhares à assistência, ao mesmo tempo que puxava lentamente com os dentes, um a um, os dedos da luva que lhe chegava ao antebraço e que simulava atirar para a assistência.

A tensão crescia à medida que esta se desfazia dos adereços com movimentos estudados e mil vezes repetidos.
Quando Miss Kelly se voltava de costas e fazia correr lentamente o fecho último, qual porta que se escancarava para a pressentida paisagem corporal. Havia na sala um instante em que a respiração ficava suspensa, à espera daquele momento único, e para nós primeiro, em que, um atónito olhar juvenil percorria a geografia física de uma mulher adulta, que iria marcar a passagem da idade da penugem, para o clube dos fala grossa.

Depois de franqueadas as portas do Ritz, havíamos de ali passar muitas das nossas jovens vidas. Tantas, que quase nos tornámos mobília. Tantas, que assistimos ao desaparecimento do velhote comediante e ainda ao de dois músicos do “Conjunto Mitra”. Tantas, que assistimos à ascensão e queda do mito Miss Kelly, cujo corpo sulcado pelo álcool e pelo tempo, haveria de arrastar até à exaustão pelo tabuado do velho Ritz.
 

Escrito por pulanito @ dezembro 06, 2012   0 comentários

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