No Ritz Club 35 Anos Depois!
Pisando as mesmas tábuas que Miss Kelly. Uma sensação deveras estranha!
Ontem, 5 de Dezembro regressei ao Ritz Club uns bons 35 anos depois de aí ter estado pela última vez.
Levei, para além de alguma da minha poesia, o texto que publiquei aqui há alguns anos e que poderão encontrar um pouco mais abaixo.
Pisar o mesmo palco que Miss Kelly, heroina dessa crónica, foi um momento de grande introspecção. Uma viagem no tempo que jamais ousei imaginar.
Obrigado ao Pedro, ao Helder e ao João e a todos quantos trabalharam na
produção deste trabalho, em especial ao João e à Sandra, que nos
receberam neste espaço de imorredoiras memórias para mim.
Muito obrigado!
O programa poderá começar a ser visto no Canal Q/Clube da Palavra no sábado dia 15/12.
Muito obrigado!
O programa poderá começar a ser visto no Canal Q/Clube da Palavra no sábado dia 15/12.
Deixo aqui o texto para quem não tenha paciência para o procurar.
Tinha-me mirado e remirado ao espelho vezes sem conta.
Penteara e despenteara o cabelo outras tantas. Tinha a expectativa de ver refletida
a imagem que há muito interiorizara.
A franja caída sobre os olhos, a tez enrugada, a gola
do casaco levantada, o olho franzido mais o cigarro estrategicamente fumado
pelo canto da boca, conferiam-me um ar suficientemente adulto para os meus
dezasseis anos. Era a estudada estratégia para ludibriar o porteiro do Ritz
Club e, finalmente subir de três em três degraus, aquele lanço de escada que me
havia de catapultar para um mundo de fadistas, chulos, ladrões e prostitutas,
no que se refere ao género humano e, chouriço assado, bacalhau à Brás e whisky
marado no respeitante aos comes e bebes.
Apesar da notória decadência, o Ritz era um dos ex-libris
de Lisboa. Quando se galgava aquela escadaria, encontrávamos à esquerda o
barbeiro que zelava pelo aspecto dos proxenetas que faziam bicha pró penteado,
e à direita, o restaurante e casa de fados, onde coabitavam as piores vozes de
Lisboa e o melhor bacalhau à Brás da cidade branca.
Mais um lanço de escadas e abriam-se as portas do
paraíso. Para quem, até ali só ouvira descrições verbais daquele espaço, estar
ali e apreciar ao vivo e a cores aquela inebriante atmosfera de músicos,
garçons, otários, pilantras e meretrizes, era qualquer coisa de alucinante.
Os 10$00 da entrada davam direito a duas cervejas Sagres
de meio litro - rara embalagem para a época - que o empregado depositava na
mesa de uma só vez contra a entrega da senha de consumo, pouco se importando se
estas aqueciam com o passar do tempo.
Sentados estrategicamente a um canto esperávamos até
altas horas pelo espetáculo de palco, já que o outro, o que se desenrolava na
sala era por nós consumido avidamente, sem que dele perdêssemos pitada.
Na pista de baile, entre boleros e tangos tocados pela
orquestra residente, logo alcunhada por nós de “Conjunto Mitra”, devido à avançada
idade dos seus componentes, evoluíam mulheres de mau porte, dançando com
embriagados provincianos de patilha, que dali a pouco, num qualquer cubículo de
pensão manhosa com águas correntes quentes e frias, haveriam de largar nota da
grossa, a troco de céleres prazeres carnais.
Depois de
terminada a série dançante e, segundo o amarelecido cardápio do espetáculo,
haveríamos de assistir ainda ao número do residente casal de comediantes, quase
tão velhos quanto o velho Ritz, cujos nomes se me varreram da memória,
justamente a anteceder o momento da noite, de que, vezes sem conta, ouvíramos
falar, e que, finalmente iríamos presenciar: o strip tease de Miss Kelly!
Quando Miss Kelly pisava as tábuas do velho Ritz,
todos os olhos se dirigiam para o foco de luz branca que insidia sobre as
adivinhadas formas roliças que se escondiam por debaixo do cintilante e longo
vestido de lantejoulas.
O pianista do “Conjunto Mitra” acompanhado pelo
contrabaixista, ilustravam o momento com acordes a propósito. Miss Kelly do
alto da sua pose de femme fatale
dirigia lânguidos olhares à assistência, ao mesmo tempo que puxava lentamente
com os dentes, um a um, os dedos da luva que lhe chegava ao antebraço e que
simulava atirar para a assistência.
A tensão crescia à medida que esta se desfazia dos
adereços com movimentos estudados e mil vezes repetidos.
Quando Miss Kelly se voltava de costas e fazia correr
lentamente o fecho último, qual porta que se escancarava para a pressentida
paisagem corporal. Havia na sala um instante em que a respiração ficava
suspensa, à espera daquele momento único, e para nós primeiro, em que, um atónito
olhar juvenil percorria a geografia física de uma mulher adulta, que iria
marcar a passagem da idade da penugem, para o clube dos fala grossa.
Depois de franqueadas as portas do Ritz, havíamos de
ali passar muitas das nossas jovens vidas. Tantas, que quase nos tornámos
mobília. Tantas, que assistimos ao desaparecimento do velhote comediante e
ainda ao de dois músicos do “Conjunto Mitra”. Tantas, que assistimos à ascensão
e queda do mito Miss Kelly, cujo corpo sulcado pelo álcool e pelo tempo,
haveria de arrastar até à exaustão pelo tabuado do velho Ritz.
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