Feira de Entradas - Memórias de Ontem, Relatos de Hoje.
Hoje é sexta-feira 3 de outubro de 1962. Como eu, outras dezenas de crianças Entradenses já só pensam no domingo que está para chegar. Este é um domingo especial, é domingo de feira, acontecimento que se perde na poeira dos tempos e que eu presenciarei, desconhecendo de todo, que esta, será a derradeira Feira de Entradas.
Um carrossel parecido aos de então
Barros na feira de Castro de 1960 - Quinze dias antes estiveram em Entradas
Foto extraída do livro - Feira de Castro 1960
Os frutos secos do Algarve são as guloseimas da época. Pêros, marmelos e romãs perfumam os ares da Rua do Cinema. Os barros de Beringel nas suas diferentes formas e feitios espraiam-se no chão à espera de compradores. Latoeiros, caldeireiros, albardeiros e outros “eiros” artesãos digladiam-se em pregões tentando atrair a maralha vinda da terra e dos montes ao redor. Toda uma multidão vestida de grave e inesperadamente feliz se acotovela rua abaixo apreciando e apreçando produtos e artefactos da sua necessidade.
Vestidos de grave
Foto extraída do livro - Feira de Castro 1960
A feira estende-se pelas ruas circundantes, mas o grande motor económico deste evento anual é o comércio do gado, especialmente de varas de porcos que se esfraldam até ao moinho de mestre moleiro José Santiago.
Porcos na feira de Castro 1960
Foto extraída do livro - Feira de Castro 1960
É toda ama paisagem que se transfigura. Muitos destes feirantes já chegaram há dias. A professora na escola, dá folga aos petizes para verem chegar os mercadores. Espetáculo sempre aguardado por crianças e adultos que sentados no adro da igreja acenam de felicidade aos recém chegados a esta terra perdida no coração da planície.
Um dos veículo da caravana chama a atenção de miúdos e graúdos. É uma velha camioneta carregada de mulheres espalhafatosas. Surgem sentadas nas lonas que lhe servirão de teto nos próximos dias. São prostitutas com as suas roupas garridas e pinturas exageradas que saúdam a multidão de jovens e velhos machos que, com a mão em concha, segredam ao ouvido mais próximo as suas preferências e projetos de libertação testicular, mal o negócio abra portas. Daqui a cinquenta anos, hei de me inspirar numa destas profissionais do sexo, para criar a personagem Rosa do romance que escreverei lá para 2012 e que se irá chamar FADO. Por agora, deixem-me usufruir do momento!
É difícil dormir com tanta coisa a acontecer lá fora. Só quero que a manhã chegue. Hei de ir chamar o Manel António, o Pardal e o Carlinhos Contreiras para irmos espreitar esse mundo novo que se nos escancara e nos acelera os corações.
Moirais e almocreves, gente que não vê gente e outros que a vêm mas é como se não a vissem, derrubam, uns atrás de outros, minúsculos copos de medronho da serra. Tentam ganhar coragem para a troco da maquia combinada expulsarem os demónios em forma de sémen que os atormentam. (Daqui a cinquenta anos voltarei a usar esta linha de pensamento, para definir o animal que carregam dentro de si!).
A fila à porta da barraca adensa-se, o corrupio do entra e sai, deixa adivinhar a este quarteto de espreitas, que a função já se iniciou. Reparo numa criança mais ou menos da minha idade que no meio desta azáfama do abotoa e desabotoa braguilhas, sai de dentro da barraca. Meio-século volvido há de se chamar Raul, segundo a minha enferma imaginação.
Este é um tempo de descoberta. Um tempo vertiginoso onde o mundo é por nós visto por um prisma caleidoscópico. Um tempo onde, inocência deixa de ser nome de freira, para passar a responder por: malícia. Razão pela qual, nossas mães, mais tarde, nos deixarão marcadas no rabo as mãos com que nos costumam acariciar o rosto. Acorrem-me à lembrança estes episódios, os que vivi e os que inventei, para vos dizer que nesse ano de 62, foi a última Feira de Entradas.
A peste suína mais a debandada da população aliada a outros factores que me escapam, fizeram com que essa fosse a última das feiras da nossa imaginação.
Cinquenta anos volvidos e integrada nas comemorações dos 500 anos da atribuição por parte de D. Manuel I do novo foral a Entradas, foi recriada. É claro que já não teve (nem podia ter!) o encanto do relato que vos deixo (até porque parte dele é invenção minha!) e, os tempos são inevitavelmente outros, apesar de os de agora se parecerem cada vez mais aos de então.
Grupo musical animando a feira de 2012
De entre as curiosidades que comigo partilhou, uma me ficou retida no pavilhão auditivo. Relatou-me que em anos idos, talvez nos finais dos anos trinta, princípios dos quarenta, a grande diva Eunice Munoz , nascida na Amareleja, terá passado em Entradas uma temporada por alturas da nossa feira. Seus pais e avós, artistas itinerantes de teatro e pantomina, por aqui montaram espetáculo onde entrava uma criança, que mais tarde haveria de ser a grande referência do teatro em Portugal.
Gosto de me surpreender! Com a partilha deste episódio quase ganhei o dia. O meu amigo e patrício seguiu o seu caminho e eu apressei-me a registá-lo, não fosse a memória de novo me atraiçoar, coisa que tem feito sem parcimónia nos últimos tempos.
Segui o meu caminho a remoer na fantástica história que acabei de ouvir. A imaginação leva-me a imaginar que uma, de entre todas as cabeleiras brancas que a minha vista alcança, será a de Eunice Munoz, revisitando incógnita as suas personagens e os seus espectros.
Do que retive, foi reviver no mesmo local e na mesma data um acontecimento, que, de algum modo me fez recuar no tempo. Registo o empenho dos e das Entradenses que arregaçaram as mangas e fizeram deste evento, um momento a congelar na memória, deixando no ar a fragrância da coragem para levar a cabo tão grandioso trabalho em tão curto espaço de tempo.
O inevitável Pardal reviveu a velha feira no jogo das latas
Um must!
Os moldes em que a feira foi organizada, souberam a pouco. Nas conversas que se pressentiam, na franqueza dos sorrisos, nos reencontros inesperados, nos comentários calorosos, na inequívoca aprovação, na expressão feliz de cada olhar, fiquei com a impressão que foi lançada uma semente que há de germinar. Que se transformará num acontecimento regional. Que unirá e reunirá a diáspora Entradense.
Aspecto da feira de 2012...Para o ano há mais e por mais tempo!
Ou muito me engano, ou estamos na inicio de um novo ciclo. Um novo período de vitalidade tal como aconteceu há poucos anos e, que por razões que conheço, (mas que prefiro dizer!), que a própria razão desconhece, se perdeu na bruma do tempo.
Viva Entradas!
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