domingo, novembro 28, 2010

Tio Joaquim Algarvio


Tenho um primo que ia namorar a cavalo. Subia a avenida de Nossa Senhora da Esperança em Entradas a galope e, a trote, os largos degraus em forma de passeio , fazendo menção de entrar casa dentro montado no imponente equídeo de modo a impressionar a sua amada.
Eu, pequenito, admirava-o por isso, era uma espécie de herói, assim como que; o que eu queria ser quando fosse grande.

Depois foi para a marinha e ainda mais impressionante ficou. Imaculadamente de branco fardado, montado na sua Norton de 600 cavalos, sempre os cavalos a dominarem a sua vida, mesmo que imaculadamente vestido de branco. E namorava a minha prima que era professora regente e usava óculos. Gosto mais das professoras regentes do que das professoras oficiais, mas não me perguntem porquê; não saberia responder, é apenas uma tendência, um gosto, se calhar gosto mesmo só do nome: regente.

Estamos no Verão, daqueles Verões alentejanos que queimam olhos e vidas e deixam na pele a visível marca da sua passagem. Meu tio Joaquim Algarvio puxa de duas cadeiras, uma grande para ele e uma mais pequena para mim, rapa de uma onça de tabaco, retira duas mortalhas zig-zag e enrola dois cigarros, um grande e um pequeno, o grande é para ele e o pequeno é para mim, ele terá cerca de 40 anos, eu, pouco passo dos 4, puxa do isqueiro a gasolina, acende o dele e a seguir acende o meu, traça a perna e diz-me para fazer o mesmo, e ficamos ali, sentados à sombra, fumando e vendo a vida passar, ele, o cigarro grande, eu, o feito à minha dimensão.

Tenho quatro anos e ouço ao fundo o ruído do galope do cavalo do primo Manuel Madeira, minha prima Felicidade, fazendo jus ao seu nome, também o deve de ter ouvido e em gritinhos de quem sente borboletas na barriga, espera ansiosamente o seu cavaleiro andante.
A sombra já desceu vagarosamente os degraus, até já engoliu uns metros da avenida, sinal que já passa das seis. Minha tia Francisca, mulher de meu tio Joaquim Algarvio, chama-nos para dentro, para lanchar.

O cheiro daquela cozinha ainda hoje me persegue. É sexta-feira dia de cozedura, o perfume que o pão exala preenche-me os sentidos. Minha tia acaba de fritar carapaus, dos mais pequeninos, jaquinzinhos, carapau do gato, como eram chamados.
A cozinha é interior, a luz que recebe vem através da telha de vidro, meu tio senta-se no foco dela e dá-me a sensação de que é um iluminado.

O café acabadinho de fazer, os carapaus acabados de fritar, o pão acabado de cozer e eu acabado de ser feliz, olho o meu tio como se olhasse para um deus. Conta-nos “partes”umas atrás das outras, minha tia, ocupada com tantos afazeres não tem tempo para as desmentir a todas e, assim, este contador de histórias, enrolador de cigarros, semi-deus debaixo da luz da telha de vidro num dia de Verão de escaldar, marcava o destino deste menino que resolveu escrever acerca desse dia talvez cinquenta anos depois.

«Fume já o meu filho que é para parecer um homem» dizia o meu tio depois de regressarmos à fresquidão da rua. Eu que nem criança era e o meu tio a querer que eu parecesse um homem!
E o meu primo montado no seu corcel a desaparecer ao cimo da rua; primeiro, o desenho imponente da figura que os dois descreviam; depois, o ruído musical das ferraduras contra as pedras da calçada em compasso acertado a esvaecer, assim como quando baixamos o volume do rádio.
E eu, era tão feliz com estas pequenas coisas!

Escrito por pulanito @ novembro 28, 2010   6 comentários

sábado, novembro 27, 2010

Alexandra Prieto uma Artista Singular.


Parte da equipa de apoio da Alexandra..julgo que falta apenas a irmã da artista Catarina Prieto


Teve lugar no passado dia 25 de Novembro, no Palácio Boullosa – Xuventude de Galicia em Lisboa a abertura da exposição da minha amiga Alexandra Prieto.
Foi um evento e peras, aquele em que tive o grato prazer de participar a vários níveis.
Em duas das salas contíguas podiam-se admirar as telas e as esculturas, sendo que uma terceira estava reservada para a grande surpresa da noite e que a partir de agora já poderei revelar. Tratava-se de uma outra exposição, esta denominada de Alexandra Prieto Collection – Art On Shoes, onde esta minha amiga com seu engenho e arte fez dos sapatos telas e, a partir de agora, as senhoras já poderão calçar as suas obras de arte, o que na minha modesta opinião é uma ideia genial, original e sem dúvida um sucesso a avaliar pelas vendas no dia da inauguração e pelo interesse demonstrado em tão singular objecto, ainda por cima um dos adereços a que regra geral as senhoras não resistem.Alguns dos modelos agora à venda



O que esta colecção tem de particular, é que quase toda ela é inspirada no meu livro AO SUL e especialmente nas crónicas que versam o Alentejo e em particular a minha terra natal: Entradas.

Eu com a artista depois de ler a crónica Duelos de Espadachim Com Sombrinhas de Chocolate, o preferido da artista, tanto que até distribuiu centenas delas aos convidados.

É engraçado pensar que num determinado dia, à roda do lume, lá na solidão da minha companhia, desterrado numa aldeia do Alentejo profundo terei escrito um determinado texto, que a Alexandra veio a converter em tela e depois transformou em sapatos, o que quer dizer, que lá no fundo, calçam as minhas crónicas…e disso tenho particular orgulho e a partir de agora andarei mais atento quando olhar para os pés das senhoras!

Todos estes sapatos são peças únicas, feitas à mão e por encomenda, logo quem os adquirir poderá ficar com a certeza de que o seu modelo, no que se refere á textura será único e exclusivo.

Regressando à exposição onde pela parte dos Miras estivemos em peso. A Catarina (minha filha mais nova) foi o modelo para os sapatos, a Susana ( a mais velha) faz parte da equipa da Alexandra e por lá andou a fazer milhentos trabalhos invisíveis e outros visíveis para que a sua amiga pudesse brilhar.

Aspecto da inauguração, podendo ver-se dois dos quadros inspirados no AO SUL

Ao evento inaugural acorreram largas dezenas de pessoas que puderam in loco e em primeira-mão apreciar o genial trabalho desta artista singular.

Parabéns Xana.

http://www.alexandraprietocollection.com/

Escrito por pulanito @ novembro 27, 2010   4 comentários

sexta-feira, novembro 19, 2010

A Prieto e a Cores uma Exposição a Não Perder.






Quero convidar todos os meus amigos e leitores que estiverem na área de Lisboa no dia 25 de Novembro, para assistirem à abertura da exposição de pintura e escultura da minha amiga Alexandra Prieto.

A Alexandra é minha amiga e tem a particularidade de para além de excelente pessoa ser uma artista de se lhe tirar o chapéu.
Aquando do lançamento do meu livro AO SUL, a Alexandra vivia uma crise existencial de que não encontrava porta de saída. Vai daí, pedi-lhe que me fizesse umas ilustrações baseadas em algumas das minhas crónicas e o trabalho resultou deveras surpreendente.

Quem viu as ilustrações ficou verdadeiramente pasmado com o trabalho realizado. A própria artista também me confidenciou que este trabalho por mim pedido lhe despoletou a vontade de produzir e a partir daí não mais parou.

Alexandra Prieto

A Alexandra desdobra-se nas múltiplas disciplinas artísticas a que as suas mão conseguem dar forma. A pintura e a escultura são a sua praia, mas não deixa de se aventurar por outros campos, sendo que um deles será a grande surpresa desta exposição e sobre o qual não devo escrever nem mais uma linha, sob pena de revelar aquilo a que a que estou obrigado por dever e cumplicidade. Quem o quiser conhecer deverá aparecer na data e hora marcada para assistir à revelação de tão guardado segredo.

A Prieto e a Cores é um convite a escutarmos os nossos sentidos. Na superfície de cada textura, frase, traço e personagem, emerge um mundo imaginário repleto de múltiplos significados ditando as suas próprias regras, transportando-nos a uma viagem ao sabor da arte. E se a arte se pode saborear, será que também se pode calçar?

Alexandra Prieto nasceu em Lisboa, em 1977. Licenciada em Escultura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, e com o curso de Desenho da Sociedade Nacional de Belas Artes em Lisboa, expõe desde 1993 em várias galerias de Lisboa e do país.

Palácio Boullosa - Xuventude de Galicia - Centro Galego de Lisboa
Endereço: Rua Júlio de Andrade, 3
1150-206
Lisboa
Horários:

Inauguração: 19h
Restantes dias:
Sempre aberto (incluindo feriado): 14h-20h
Telefone: 218 853 680
Móvel: 962491694

Mapa de localização google: http://maps.google.es/maps?source=embed&ie=UTF8&hl=gl&msa=0&msid=108681861992330612388.000456226110606ca2300&ll=38.720692,-9.14084&spn=0.003348,0.005203&z=17&oi=map_misc&ct=api_logo

Escrito por pulanito @ novembro 19, 2010   2 comentários

segunda-feira, novembro 15, 2010

Na Fila do Supermercado


Juro que tenho tentado escrever. Juro que tenho tentado encarreirar umas quantas frases de modo a actualizar a montra desta loja de esquina com vista para o meu interior.
Escrevo, volto a escrever e após algumas frases apago tudo e volto de novo a escrever.
Não sei o que se passa comigo, só me apetece nada apetecer!
Bem sei que o meu melhor amigo, que por sinal era meu pai, partiu recentemente deixando em seu lugar uma surda ausência com a qual ainda não aprendi a lidar e, talvez por via desta falta, me sinta completamente desmotivado para a escrita.

Talvez pudesse exorcizar aqui alguns dos fantasmas que me perseguem. Talvez pudesse aqui expugnar alguns dos diabos que me atormentam e, assim, escrevendo me iria de uma qualquer lei da morte libertando. Mas não! Volto a ser assaltado por este colossal vazio que de tão negro e fundo nem dele ouso falar.

Por isso decidi fazer uma sessão de charcutaria artesanal e, assim sendo, proponho-vos um enchimento de chouriços em série falando-vos do que de mais banal existe: O meu azar na fila da caixa do supermercado.
Não sei se é só comigo que acontece, mas que tenho um azar do caraças com a escolha da caixa onde pretendo pagar as contas das minhas mercas.
Ainda hoje, ao regressar a casa passei pelo supermercado para fazer umas pequenas compras e, ao aproximar-me da altura de pagar, verifiquei que estavam quatro caixas abertas, fiz o meu habitual cálculo mental de modo a fintar a má sorte que me persegue. Fiz um compasso de espera, olhei para a cara das operadoras para ver qual era a mais despachada e fiz a minha escolha. Calhou na caixa 3. Só tinha uma pessoa à minha frente e, pensando que pelo menos desta vez tinha acertado, quando vou pagar o raio da máquina que dá os tickets emperrou, não deixando a pobre funcionária abrir a caixa.
Nas outras caixas ao lado era um ver se te avias, e eu, a vê-los passar. Encolhi mentalmente os ombros, sorri para dentro e pensei na minha malapata sempre que tento pagar as contas.

Noutras alturas, ou apanho uma velhota à frente que só depois de arrumar muito bem os sacos é que puxa da carteira, conta e reconta as notas, depois saca do porta moedas e, não raras vezes dos óculos, numa tentativa de agilizar o processo de pagamento, conta moeda a moeda, volta contar e por fim, já quando o meu desespero começa a ganhar grunhidos de desconforto lá se afasta lentamente.
Isto para não falar doutros clientes das mais variadas proveniências e aspectos que se esquecem de pesar os legumes tornando num eterno “instantinho” ao local de pesagem, regressando apenas quando os outros clientes concorrentes deste jogo avançam avassaladoramente tapete fora, um atrás do outro, e eu, a vê-los passar!
Para me distrair penso naquele jogo dos barcos da feira popular, onde também nunca ganhei nada, e onde os concorrentes tinham de acertar com uma bola num orifício que saltava para o dito através duma pancada num botão que as fazia saltar, que por sua vez fazia movimentar os pequenos barcos, sendo que, o primeiro a atingir a meta era o que ganhava a famosa garrafa de ginja.
As mercadorias a passarem no tapete, fazem-me lembrar esse jogo de destreza e precisão de que tanto gostava lá para as bandas de Entrecampos.

Temos ainda o caso dos clientes que mesmo à beirinha de pagarem resolvem contestar o preço de determinado produto que não confere com o recibo ou com o mostrador da caixa, resultando obviamente na chamada de um superior para resolver a contenda, coisa que dependendo da disparidade em causa, demora mais ou menos tempo, geralmente, muito!

Há ainda as meninas da caixa faladoras por natureza, que para se concentrarem na conversa se esquecem que estão a trabalhar e que naquele corredor da morte das nossas carteiras, o tempo é um bem precioso e toda a gente quer sair dali o mais rapidamente possível, embora tenham deambulado pelos corredores do supermercado, comparando preços, avaliando produtos, comendo à sucapa (meu caso!), provando tudo o que há para provar, para depois quase terem um ataque de nervos quando entram no obrigatório corredor, de onde todos saímos mais pobres.

Por outro lado, temos ainda as caixas inexperientes que, ou trocam o produto na hora da pesagem (sempre por outro mais caro, caso contrário também ninguém se queixa..e ainda bem!), ou que se enganam no número de embalagens e lá agarram de minuto a minuto num telefone para onde falam para o bocal mas tendo o cuidado do auricular ficar à frente do nariz….coisa estilosa, p’ra dar cardenância, penso eu no pensar à la Jorge Jesus.

Já tentei das mais variadas maneiras fintar este destino de pagador de promessas feitas chouriço com que enchi esta crónica, mas na verdade sempre que me abeiro duma caixa de supermercado, existe uma força superior que tira uns minutos dos seus múltiplos afazeres, para vir gozar comigo e, fazer com que o meu destino, seja destilar ódios sobre pessoas que não têm culpa nenhuma destes meus jogos mentais dignos de um perfeito anormal.



PS: Regressei agora do supermercado: terça-feira dia 16 11 2010

Passei no supermercado para comprar duas coisas: papel higiénico e maçãs, duas coisas essenciais para uma boa qualidade de vida.
Quando vou para fazer a minha habitual abordagem, vejo (pela primeira vez na vida), duas caixas sem ninguém. Pensei para com os meus botões. É hoje! É hoje que se me vai acabar o azar.
Decido-me pela caixa mais próxima da porta e com um enorme sorriso apresento-me com os produtos na mão, disposto a expugnar este mau-olhado que há tanto tempo me apoquenta.
Resposta da menina da caixa, que tinha um pequeno papel na mão: «Importa-se de esperar um bocadinho, é que a senhora a quem este papel pertence foi ali num instantinho». No tal famoso “instantinho” que tanto abomino; eram 11:31.
Como a outra caixa continuava vazia, disse para comigo: «Não! Desta não me enganas»,e zás agarro no papel higiénico e nas maçãs fazendo intenção de ir para a outra caixa no preciso momento em que entra uma velhinha (género idosa do anúncio do KitKat) com o carrinho com as rodas a ranger e atulhado de material.
Nesse instante chega mais um cliente à minha fila, e entretanto à outra caixa juntam-se outros clientes, o que me faz ficar ali à beirinha de pagar como se fora um peixe desesperado que olha para o mar à sua frente e acaba por morrer na praia asfixiado.
Às 11:37 (e seis minutos em fila de supermercado pode ser um entupimento) lá aparece a senhora com a caixa dos chocapits para a neta que reclamando com a pobre rapariga da caixa, afirmando dificuldade em na encontrar.
Este é um azar light! Que todos os males do mundo fossem termos de esperar na fila do supermercado para pagar (sinal de que temos dinheiro em carteira!) e capacidade para lá nos deslocarmos. Digo isto para chegar à construtiva resolução de que afinal tudo é relativo; mas, que me anda a toldar o juízo: disso não restam dúvidas:

Escrito por pulanito @ novembro 15, 2010   11 comentários

terça-feira, novembro 02, 2010

Barbearia Ideal


Hoje (29/10/2010) ao almoço e por via de parte da família se haver reunido, voltámos a dissecar alguns episódios da nossa existência. Ao falarmos dos nossos tempos de juventude caímos em determinado episódio que resolvi convosco partilhar.

No final dos anos sessenta apareceu um aparelho que revolucionou a vida das pessoas, mas que ao mesmo tempo ceifou centenas, senão milhares delas. O nome desse precioso aparato era, e é: Esquentador! (aparelho a gás que serve para aquecer instantaneamente a água).

Porque não existiam canalizações; porque as casas não estavam preparadas; porque se desconhecia o perigo que este representava, era geralmente montado nas casas de banho, que sendo geralmente espaços pequenos e pouco arejados, logo, potenciais locais onde o praticamente inodoro monóxido de carbono actuava silenciosamente liquidando as suas vítimas. Lembro-me de lá no bairro onde morava, de pelo menos meia dúzia de pessoas haverem sucumbido a este moderno predador.

Mas, tal como os restantes electrodomésticos, este, não estava ao alcance de todas as bolsas. Por isso, e para usufruir das maravilhas desta inovação, muito do pessoal lá do bairro (incluindo eu nalgumas ocasiões), ia tomar banho à Barbearia Ideal que era assim uma espécie de pré-SPA suburbano como mais à frente podereis aquilatar.

Assim como a televisão que já existia há mais de uma década, mas ainda não chegava à maioria dos lares portugueses, era essencialmente nos cafés que se enchiam até à porta para ver os programas em voga nessa altura; isto para dizer, que o esquentador estava para a barbearia, como a televisão estava para o café.

Aos sábados pela manhã era normal ver chegar os clientes com a sua toalha debaixo do braço e debitar ao João barbeiro os serviços pretendidos, que geralmente eram: banho e penteado; banho, corte e penteado ou banho penteado e tratamento capilar.
João era um indivíduo louro, pequenino e com vinte e tal anos, assim com um ar de sacana de segunda, a que o seu penteado de risco ao lado e a respectiva franja em forma de onda encaracolada então na moda, lhe conferia um ar de galã das barracas, inspirado nas fotonovelas da revista Capricho. Cirandava à volta dos clientes de tesoura e pente em punho, cortando-lhes e penteando-lhes o cabelo e ao mesmo tempo tentando impingir algum dos múltiplos produtos que tinha à venda, sendo que parte deles eram de proveniência mais que duvidosa.

A barbearia em si era um lugar banal como tantas outras. Duas cadeiras de barbeiro, uma pilha de jornais e revistas fora de prazo, um enorme espelho que cobria toda a frente das cadeiras e um outro na parede oposta das mesmas dimensões, que dava aquele lugar uma profundidade que este nunca sonharia ter, e ao fundo a minúscula casa de banho onde estava instalado o aparelho da moda que debitava a tal água quentinha.
Um enorme banco corrido forrado a napa preta, servia de local de espera para os múltiplos serviços deste peculiar estaminé dedicado às artes banhistas & capilares.

Os clientes iam entrando e banhando-se e quando saíam do cubículo a que João chamava pomposamente de casa de banho, sentavam-se directamente numa das cadeiras para serem por este penteados, nunca sem este antes desta final função, lhes tentar impingir uma ampola contra a queda do cabelo, massajando no couro cabeludo o conteúdo da bolha milagrosa. Tenho a impressão que a tal mesinha engarrafada não possuía qualquer das propriedades milagrosas e amplamente anunciadas pelo barbeiro trafulha, mas como era fresquinha e a massagem sabia bem, também eu aderi à moda do tratamento ampolo-capilar.

Na Barbearia Ideal, não se prestavam unicamente os serviços anunciados. Quase todos os clientes eram sócios de parcelas de rebuscadas chaves do totobola, que João desdobrava ao longo da semana, altura em que o serviço menos apertava.

Certa vez numa chuvosa segunda-feira de manhã, depois de uma noite de trabalho, comprei A Bola, apanhei um táxi e sentado no banco de trás fui conferindo a chave do totobola, adquirida na barbearia em sociedade de dez ou mais jogadores.

Nos primeiros seis acertos não liguei muito à coisa, mas quando confiro o sétimo vejo que também está certo. Comecei a ter palpitações e cobri o resto do boletim para não ter a curiosidade de ver de um golpe o resto da chave, coisa que me dava um particular gozo. Fui puxando devagarinho o oitavo resultado e quando o confrontei com a chave do jornal também este combinava com o da minha matriz.

A ansiedade ia ganhando proporções assustadoras, mas, para chegar a qualquer prémio ainda faltavam acertar em quatro resultados. O táxi sulcava as avenidas da cidade exactamente no sentido contrário da confusão citadina e, eu no banco de trás, verificava atónito que ao nono resultado, também a bota batia com a perdigota.

Por essa altura as batidas cardíacas já estavam bastante aceleradas, quando verifiquei o décimo resultado, que também emparelhava com o do jornal, comecei a sentir suores frios e num gozo que até aí nunca havera sentido quis prolongar aquela sensação de incerteza, até que arranjei coragem e verifiquei a décima primeira coluna da chave mágica que por artes que não sei descodificar também estava certa.

Estava a um resultado certo de obter um prémio e como só faltavam dois, tinha cinquenta por cento de possibilidades de num deles acertar, logo, com novo achego de adrenalina.

Quando arranjei coragem de verificar aquele décimo segundo resultado, nem queria acreditar. Um prémio já cá morava! Já não sei se era 1, X ou 2, mas que o resultado era o mesmo da chave do jornal, disso, não tinha qualquer dúvida. Estava a um mísero resultado de ficar rico!

O motorista começou a olhar-me pelo retrovisor e ás tantas perguntou-me se estava bem, já que a agitação que ia no banco de trás não premeditava coisa boa.

Foi nesse preciso instante que num impulso que não sei descrever por palavras, dei um salto bati com a cabeça no tejadilho ao mesmo tempo que o motorista travava a fundo encostando o Mercedes 180 a meio do Campo Grande ali para as bandas da Pastelaria Tatu que fazia (e ainda faz) esquina com a Avenida da Igreja em Lisboa.

O homem saiu do seu lugar, abriu a porta traseira e perguntou-me se me encontrava bem. Se queria que me levasse ao hospital ou coisa parecida.
Saí do carro, abracei o motorista e disse-lhe: «Oh homem, qual hospital qual carapuça, vamos mas é celebrar, porque acabei de fazer 13 no Totobola e você é a primeira pessoa a saber».

Vivia uma alegria indescritível, queria contar ao mundo a boa nova, mas para já era importante celebrar, vai daí disse ao motorista: «Amigo, encoste aí no Quebra-Bilhas para a gente comemorar e deixe o taxímetro a contar!»

Lembro-me que comemos cada um, uma sandes de presunto e bebemos também cada um, uma cerveja preta, que eu, naturalmente, fiz questão de pagar.

Lá nos metemos no táxi em direcção à Barbearia Ideal. Quando aí cheguei tive de revolver todos os bolsos para pagar a corrida e mesmo assim ainda lhe fiquei a dever dez tostões.

Dirigi-me ao João que na sua ladainha habitual convencia o desgraçado da cadeira a comprar uma qualquer bugiganga gamada, mas que este sempre afirmava ser das melhores proveniências, mesmo quando todos os clientes estavam fartos de saber que para além de barbeiro o João era o “intruja” de serviço lá do bairro.

«Então João! Não tens nada para me dizer?» Inquiri.
«Tenho!».
«Vai-te mas é deitar que estás com umas olheiras que metes medo!» retorquiu.
«Então e o Totobola. O treze que fizemos na chave. Não me digas que não meteste o boletim?» Esbracejava eu afogueado, começando a ver o caso mal parado!

João olhou para mim com aqueles dois olhos de fuinha que lhe ladeavam o díspar nariz e rematou: «Realmente na chave fizemos treze, mas nos desdobramentos apenas fizemos quatro dozes. Como esta semana houve uma cambada de acertadores, essa chave ganhou no total 75$00, como tinhas 10% ganhaste 7$50, como me deves dez paus, passa para cá cinco coroas para ficarmos quites» Rematou, enquanto com a cabeça à banda à moda dos barbeiros, acertava as patilhas do cliente.

Os carteiristas frequentadores do estaminé riam a bom rir. Quando já ia de saída um deles atirou: «Ainda bem que não te saiu nada, senão lá tínhamos que te fazer a folha um dia destes!»
Os amigos do alheio lá continuaram na galhofa, enquanto eu saía de mansinho, contabilizando pelos dedos o prejuízo de ter sido rico por meros instantes.

Escrito por pulanito @ novembro 02, 2010   4 comentários

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