Barbearia Ideal
Hoje (29/10/2010) ao almoço e por via de parte da família se haver reunido, voltámos a dissecar alguns episódios da nossa existência. Ao falarmos dos nossos tempos de juventude caímos em determinado episódio que resolvi convosco partilhar.
No final dos anos sessenta apareceu um aparelho que revolucionou a vida das pessoas, mas que ao mesmo tempo ceifou centenas, senão milhares delas. O nome desse precioso aparato era, e é: Esquentador! (aparelho a gás que serve para aquecer instantaneamente a água).
Porque não existiam canalizações; porque as casas não estavam preparadas; porque se desconhecia o perigo que este representava, era geralmente montado nas casas de banho, que sendo geralmente espaços pequenos e pouco arejados, logo, potenciais locais onde o praticamente inodoro monóxido de carbono actuava silenciosamente liquidando as suas vítimas. Lembro-me de lá no bairro onde morava, de pelo menos meia dúzia de pessoas haverem sucumbido a este moderno predador.
Mas, tal como os restantes electrodomésticos, este, não estava ao alcance de todas as bolsas. Por isso, e para usufruir das maravilhas desta inovação, muito do pessoal lá do bairro (incluindo eu nalgumas ocasiões), ia tomar banho à Barbearia Ideal que era assim uma espécie de pré-SPA suburbano como mais à frente podereis aquilatar.
Assim como a televisão que já existia há mais de uma década, mas ainda não chegava à maioria dos lares portugueses, era essencialmente nos cafés que se enchiam até à porta para ver os programas em voga nessa altura; isto para dizer, que o esquentador estava para a barbearia, como a televisão estava para o café.
Aos sábados pela manhã era normal ver chegar os clientes com a sua toalha debaixo do braço e debitar ao João barbeiro os serviços pretendidos, que geralmente eram: banho e penteado; banho, corte e penteado ou banho penteado e tratamento capilar.
João era um indivíduo louro, pequenino e com vinte e tal anos, assim com um ar de sacana de segunda, a que o seu penteado de risco ao lado e a respectiva franja em forma de onda encaracolada então na moda, lhe conferia um ar de galã das barracas, inspirado nas fotonovelas da revista Capricho. Cirandava à volta dos clientes de tesoura e pente em punho, cortando-lhes e penteando-lhes o cabelo e ao mesmo tempo tentando impingir algum dos múltiplos produtos que tinha à venda, sendo que parte deles eram de proveniência mais que duvidosa.
A barbearia em si era um lugar banal como tantas outras. Duas cadeiras de barbeiro, uma pilha de jornais e revistas fora de prazo, um enorme espelho que cobria toda a frente das cadeiras e um outro na parede oposta das mesmas dimensões, que dava aquele lugar uma profundidade que este nunca sonharia ter, e ao fundo a minúscula casa de banho onde estava instalado o aparelho da moda que debitava a tal água quentinha.
Um enorme banco corrido forrado a napa preta, servia de local de espera para os múltiplos serviços deste peculiar estaminé dedicado às artes banhistas & capilares.
Os clientes iam entrando e banhando-se e quando saíam do cubículo a que João chamava pomposamente de casa de banho, sentavam-se directamente numa das cadeiras para serem por este penteados, nunca sem este antes desta final função, lhes tentar impingir uma ampola contra a queda do cabelo, massajando no couro cabeludo o conteúdo da bolha milagrosa. Tenho a impressão que a tal mesinha engarrafada não possuía qualquer das propriedades milagrosas e amplamente anunciadas pelo barbeiro trafulha, mas como era fresquinha e a massagem sabia bem, também eu aderi à moda do tratamento ampolo-capilar.
Na Barbearia Ideal, não se prestavam unicamente os serviços anunciados. Quase todos os clientes eram sócios de parcelas de rebuscadas chaves do totobola, que João desdobrava ao longo da semana, altura em que o serviço menos apertava.
Certa vez numa chuvosa segunda-feira de manhã, depois de uma noite de trabalho, comprei A Bola, apanhei um táxi e sentado no banco de trás fui conferindo a chave do totobola, adquirida na barbearia em sociedade de dez ou mais jogadores.
Nos primeiros seis acertos não liguei muito à coisa, mas quando confiro o sétimo vejo que também está certo. Comecei a ter palpitações e cobri o resto do boletim para não ter a curiosidade de ver de um golpe o resto da chave, coisa que me dava um particular gozo. Fui puxando devagarinho o oitavo resultado e quando o confrontei com a chave do jornal também este combinava com o da minha matriz.
A ansiedade ia ganhando proporções assustadoras, mas, para chegar a qualquer prémio ainda faltavam acertar em quatro resultados. O táxi sulcava as avenidas da cidade exactamente no sentido contrário da confusão citadina e, eu no banco de trás, verificava atónito que ao nono resultado, também a bota batia com a perdigota.
Por essa altura as batidas cardíacas já estavam bastante aceleradas, quando verifiquei o décimo resultado, que também emparelhava com o do jornal, comecei a sentir suores frios e num gozo que até aí nunca havera sentido quis prolongar aquela sensação de incerteza, até que arranjei coragem e verifiquei a décima primeira coluna da chave mágica que por artes que não sei descodificar também estava certa.
Estava a um resultado certo de obter um prémio e como só faltavam dois, tinha cinquenta por cento de possibilidades de num deles acertar, logo, com novo achego de adrenalina.
Quando arranjei coragem de verificar aquele décimo segundo resultado, nem queria acreditar. Um prémio já cá morava! Já não sei se era 1, X ou 2, mas que o resultado era o mesmo da chave do jornal, disso, não tinha qualquer dúvida. Estava a um mísero resultado de ficar rico!
O motorista começou a olhar-me pelo retrovisor e ás tantas perguntou-me se estava bem, já que a agitação que ia no banco de trás não premeditava coisa boa.
Foi nesse preciso instante que num impulso que não sei descrever por palavras, dei um salto bati com a cabeça no tejadilho ao mesmo tempo que o motorista travava a fundo encostando o Mercedes 180 a meio do Campo Grande ali para as bandas da Pastelaria Tatu que fazia (e ainda faz) esquina com a Avenida da Igreja em Lisboa.
O homem saiu do seu lugar, abriu a porta traseira e perguntou-me se me encontrava bem. Se queria que me levasse ao hospital ou coisa parecida.
Saí do carro, abracei o motorista e disse-lhe: «Oh homem, qual hospital qual carapuça, vamos mas é celebrar, porque acabei de fazer 13 no Totobola e você é a primeira pessoa a saber».
Vivia uma alegria indescritível, queria contar ao mundo a boa nova, mas para já era importante celebrar, vai daí disse ao motorista: «Amigo, encoste aí no Quebra-Bilhas para a gente comemorar e deixe o taxímetro a contar!»
Lembro-me que comemos cada um, uma sandes de presunto e bebemos também cada um, uma cerveja preta, que eu, naturalmente, fiz questão de pagar.
Lá nos metemos no táxi em direcção à Barbearia Ideal. Quando aí cheguei tive de revolver todos os bolsos para pagar a corrida e mesmo assim ainda lhe fiquei a dever dez tostões.
Dirigi-me ao João que na sua ladainha habitual convencia o desgraçado da cadeira a comprar uma qualquer bugiganga gamada, mas que este sempre afirmava ser das melhores proveniências, mesmo quando todos os clientes estavam fartos de saber que para além de barbeiro o João era o “intruja” de serviço lá do bairro.
«Então João! Não tens nada para me dizer?» Inquiri.
«Tenho!».
«Vai-te mas é deitar que estás com umas olheiras que metes medo!» retorquiu.
«Então e o Totobola. O treze que fizemos na chave. Não me digas que não meteste o boletim?» Esbracejava eu afogueado, começando a ver o caso mal parado!
João olhou para mim com aqueles dois olhos de fuinha que lhe ladeavam o díspar nariz e rematou: «Realmente na chave fizemos treze, mas nos desdobramentos apenas fizemos quatro dozes. Como esta semana houve uma cambada de acertadores, essa chave ganhou no total 75$00, como tinhas 10% ganhaste 7$50, como me deves dez paus, passa para cá cinco coroas para ficarmos quites» Rematou, enquanto com a cabeça à banda à moda dos barbeiros, acertava as patilhas do cliente.
Os carteiristas frequentadores do estaminé riam a bom rir. Quando já ia de saída um deles atirou: «Ainda bem que não te saiu nada, senão lá tínhamos que te fazer a folha um dia destes!»
Os amigos do alheio lá continuaram na galhofa, enquanto eu saía de mansinho, contabilizando pelos dedos o prejuízo de ter sido rico por meros instantes.
4 Comments:
Mais um GRANDE texto á PULANITO.
Um dos tais que nos prende até ao fim, deixando sempre um sorriso nos lábios.
Um abraço companheiro
Jmatos
Caro Napoleão(permita-me que o trate assim), escusado será dizer que mais uma vez fiquei impressionado com outro "pedacito" de vida que, felizmente, decidiu partilhar connosco.
Nos meus tenros dezasseis anos a minha ignorância face à literatura ainda é significativa, mas ainda assim permita-me dizer-lhe que é talvez um dos poucos escritores que, pela sua autenticidade, me faz vaguear pelas mais diversas emoções.
Já agora gostaria de lhe perguntar quando é que o Sam the Kid está a pensar lançar um novo álbum, é que já estou com algumas saudades de boa música. Fico à espera de resposta (caso me saiba responder).
Cumprimentos e continuação de boa escrita!
Caro Pedro Monteiro,
Essa coisa de me tratares por "escritor" acarreta muitas responsabilidades para as quais não estou preparado, embora tenha de agradecer as tuas palavras. Na verdade, e nos dias que correm, é das poucas coisas que dá alguma "pica" é arrancar uma "croniqueta" como a que acabaste de ler, mas daí a ser escritor vai uma enorme distância. De qualquer modo,obrigado pelo incentivo.
Quanto ao Samuel. Penso que muito em breve terás algumas novidades, nomeadamente no que diz respeito a um disco de beats, mas nada te posso garantir, porque os tempos do Samuel, são os tempos dele, e aí nada posso fazer...
Abraço e aparece....
Em primeiro lugar agradeço a resposta à pergunta que lhe deixei, depois, relativamente ao facto de o tratar por "escritor" decidi servir-me de um simples dicionário que tinha aqui à mão e a definição que consta é que escritor é todo aquele que se expressa pela arte da escrita, portanto creio que se aplica a si, uma vez que, na minha opinião, você fá-lo da mesma forma que alguns escritores mais consagrados, porque a sua literatura chega a todo aquele que esteja disposto a lê-la e a senti-la. Relativamente às responsabilidades que possa acarretar, a única que vejo é continuar a escrever para todos aqueles que gostam de ler Napoleão Mira/Pulanito (obviamente se assim for a sua vontade).
Portanto se me permite, irei continuar a tratá-lo por escritor, porque para mim sem dúvida que o é.
Um abraço...
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