Diário de Viagem ....Dia Zero

Homenagem ao ciclista dos caminhos de Santiago

Estou a menos de 24 horas da partida para Santiago de Compostela, e um certo nervoso miudinho começa-se de mim a apoderar.
Calculo que me seja difícil dormir logo à noite, tanto mais, que serei invadido pelo bicho do remorso, que é assim uma coisa parecida ao bicho da madeira mas em humanóide; corrói, incomoda, enerva e lentamente destrói as certezas por que lutámos, transformando-as em dúvidas titubeantes, logo, numa intermitente fraqueza que quero afastada de mim até terem passados os primeiros 40 ou 50 quilómetros, altura em que assumo em pleno que os planos traçados são para levar até ao fim, ou seja. Até ao Km Zero da Praça del Obradoiro em Santiago de Compostela.

Porque é que um gajo com 53 anos de idade se propõe a um desafio desta natureza. Pergunto eu à imagem reflectida do outro lado do espelho, e que por acaso até é física e estranhamente parecida comigo.
No outro dia fiz uma retrospectiva deste mais de meio século. Revisitei mentalmente, locais e pessoas que ao longo deste trajecto comigo se cruzaram e ao meu lado fizeram parte do percurso da vida.
No bairro suburbano onde cresci (Quinta das Mós / Fonte da Pipa) grande parte do pessoal da minha geração, ou morreu agarrado a uma seringa espetada no braço numa qualquer casa de banho ou deambula de tasca em tasca, buscando no vinho barato o consolo possível para uma vida sem rumo, sem história, sem significado.

Só posso concluir que sou um felizardo pelo trajecto de vida que escolhi e percorri. O facto de aos 53 anos poder montar-me numa bicicleta e pedalar durante uma série de dias, devorando quilómetros uns atrás dos outros na companhia de amigos que comungam do mesmo ideal é uma bênção que em Santiago agradecerei aos deuses da minha crença.

Mas até lá chegar, muito suor há que transpirar, muito quilómetro há que galgar e muita montanha há para conquistar, muito desânimo há para ultrapassar e muita luta para vencer.
Bem sei que muitos outros vencem este e outros desafios de maior monta e estou a lembrar-me de uns quantos seres humanos que conheço e que são um exemplo para mim e para os meus camaradas de viagem.
Lembro-me e homenageio a tenacidade desse viajante solitário chamado Carneiro, que sozinho por esse Portugal fora se cruza com outros mareantes da estrada. Lembro-me do Pedro Alves que percorreu numa única etapa Viana do castelo- Sagres. Não posso deixar de referir esse enorme cavaleiro do asfalto chamado Zé Lima que o ano passado teve a companhia da simpática Rosa e ambos em cadeira de rodas percorreram Portugal num Agosto de brasa. Resta-me homenagear esse “ganda maluco” Brasileiro chamado Zé do Pedal, que fazendo jus ao seu nome pedala desde 1981 por esse mundo fora, estando neste momento a efectuar o percurso Paris – Joanesburgo, apenas 17.000 Km num pequeno kart a pedal atravessando a Europa e a África; aqui, com todos os perigos inerentes a uma viagem em solitário pelo continente de onde todos originamos.

Na verdade sinto-me muito pequeno ao pé destes e doutros audazes ciclistas que fazem da estrada a sua casa; uns em quase permanência, outros quando lhes é permitido, mas essa coisa de voltar ao asfalto e palmilhar quilómetros é factor comum a todos eles e onde humildemente me incluo.

Este ano ainda não sei como abordar o diário de viagem, até porque, já fizemos este percurso no ano passado e seria penoso para quem nos lê estar a repetir percursos que estão aqui publicados (postagens de Junho 2008).
Terei de fazer uma abordagem diferente, mas que, ainda não sei qual será. Só sei que terei de me desenrascar a cada final de etapa.
É lógico que os episódios da viagem terão lugar neste relato, mas de modo sucinto. Focar-me-ei noutros aspectos da viagem, nomeadamente dando aos meus companheiros de estrada o destaque que estes merecerão.

Ficarei a aguardar os vossos comentários e sugestões, carburante mais que necessário, para quem necessita da vossa força para levar a bom porto esta jornada ciclopedalante.