Cine Texas
O barulho ensurdecedor que jorrava do altifalante da velha Bedford anunciando as películas para o fim-de-semana, não deixava ninguém descansar depois das nove da manhã obrigando-nos a absorver a informação emanada pelos altíssimos decibéis.
“ Hoje, sábado não perca o espectacular filme de acção, que fez carreira no S. Jorge durante 14 semanas a fio. Com os extraordinários actores Richarde Burtão e Elizabete Táilór. Suáré às 22.00 e amanhã domingo mátiné pelas 16.00 . Não perca…” e lá se perdia no voltar de uma curva apertada, informando e atordoando ao mesmo tempo os habitantes dessas zonas, que não raras vezes, apareciam à janela praguejando contra quem quer que fosse que dirigia aquela curiosa e maldita viatura, já de si, motivo de admiração por onde passasse, não só pelo ruído que produzia, mas também pelos cartazes nela expostos.
O certo é que, quer fosse ao Sábado ou ao Domingo, o cinema estava sempre repleto.
O cinema de que vos falo, chamava-se Cine Texas e foi na minha adolescência o meu cinema paraíso.
Situado numa zona periférica de Lisboa (Galinheiras), este barracão de chapa zincada marcou a minha cinéfilomania. Não raras vezes dou comigo a relembrar os filmes que passavam na tela, muitas das vezes, menos importantes que aqueles que passavam na sala.
Ir ao cinema e a fita parar a meio porque a lâmpada se fundia, porque a fita se cortava, ou ainda porque era necessário acender as luzes para aquietar a pancadaria que por norma começava na geral, atravessava a plateia continuava pelo balcão e só terminava com a intervenção da polícia ou com a ameaça do dono em não continuar a projecção caso a zaragata não terminasse, era o pão nosso de cada sessão.
Os bilhetes custavam quatro, cinco e seis escudos, exactamente pela mesma ordem com que a bordoada começava.
Quando o dinheiro era “ justo”, lá tinha que alinhar na geral. Umas tábuas corridas mesmo por baixo do ecrã, que fazia com víssemos o filme de um ângulo disforme e que, saíssemos de lá com um torcicolo no pescoço devido à quase perpendicular posição em que ficávamos sentados.
Invariavelmente, quando tal acontecia tocava-me ficar sentado perto ou ao lado do Chico Seis Dedos, engraxador de profissão e mentiroso por vocação. Era tão intrujão que ninguém acreditava nele, mesmo quando simplesmente dizia: “Bom Dia”., toda a gente olhava para o céu para se certificar.
Da inúmera família só o Chico é que sabia ler. Quando ia ao cinema com os irmãos, tinha por hábito ler as legendas em voz alta para que melhor pudessem acompanhar a película, ao mesmo tempo que azucrinava a cabeça de toda a assistência com tal ladainha, sendo este um dos motivos porque começava o espalhafato habitual, de que eu não perdia pitada.
“ Lá em casa a Maria é que paga” ouvia-se do balcão, aquando duma cena mais ousada ou mesmo durante um beijo arrebatado, que na época era o mais arrojado a que podíamos assistir.
Foi aqui, no Cine Texas, que me apaixonei por Romy Schnneider. Jamais faltei a uma fita em que participasse. Foi o filme “ A Piscina “ que fez despertar em mim esse terramoto de emoções que atormentava a minha juvenil existência, em simultâneo com a batalha contra o acne e a dos os pêlos da cara que teimam em não romper a derme, e para compor o ramalhete, as crises de ciúme do Alain Delon, foram ao tempo, as minhas maiores preocupações.
Romeu e Julieta passou no Cine Texas mais vezes que o próprio Trinitã – O Cowboy Insolente; tantas vezes, que um espectador assíduo conhecedor duma cena de suspense em que na sala e na tela o silêncio imperava; quando Romeu fazia menção de se voltar , costumava na altura em que tal devia acontecer, gritar o nome do protagonista, a que este respondia com um movimento que parecia olhar a plateia, procurando descortinar de onde vinha aquele chamamento, o que provocava na assistência um ataque geral de riso.
Nos dias de invernia, quando a chuva caía desamparada dos céus, batia nas chapas de zinco provocando tal barulheira que não deixava ouvir o que se passava na tela, o que era para mim um prazer redobrado.
De Inverno ou noutra qualquer estação, os espectáculos no Cine Texas tinham sempre dois intervalos. Um, depois das notícias censuradas e requentadas, comentadas umas vezes por Fernando Pessa outras por Pedro Moutinho, sempre trazidas até nós pelos aviões da TAP, conforme faziam gala em anunciar; o outro a meio do filme, propriamente dito.
Quando chegavam os intervalos, entre esticas e “nógás”, disputavam-se grandes partidas de matrecos na barraca de jogos da Ti Xaxa, que só terminavam quando a ensurdecedora corneta nos avisava que era tempo de voltar a sonhar.
Nesta tradicional barraca de feira, as paredes eram revestidas de frases apelando à educação e ética desportiva. Uma delas tem-me acompanhado uma vida inteira.
“O verdadeiro vencedor, jamais se ri do vencido”.
Até podia ser nome de filme, cujo protagonista fosse a Romy Schnneider.
Até podia!!!
Publicado no jornal O Campo em 2002
2 Comments:
No ecran vejo-me todos os dias....do ecran saltam sonhos, fantasias, e esperanças, desde os tempos de menino, não podemos parar de sonhar. Temos saudades dos antigos filmes e sonhos mas não podemos parar de sonhar, parar é morrer e todos os sonhos podem ser realidade, basta sonhar.....
Caro Napoleão
Cada vez que por aqui passo, a minha memória dispara.
Vou juntar neste comentário o baile e o cine..Como sabes, nascido em Ferreira, fiz o percurso do Rio Grande, crescendo com Almada, entre a Lisnave e os prédios.
Daí que as minhas recordações de província, coincidentes com as tuas, passaram-se todas na Zambujeira, de 60 a 85 passei lá todos os Agostos, muitos Julhos e Setembros e alguns Junhos!! Dos anos 60, essa carrinha Bedford que, aí pelas 5 da tarde, hora de banho e de lanche, arrancava com a publicidade a megafone, estacionada à curva e aproveitando o Palheirão para duplicar a mensagem devido ao eco. Como mesmo assim se custava a perceber quem iria estrelar, tinhamos de esperar pelos 2 cartazes pregados numa madeira no largo... a ansiedade era devido á idade: maiores de 18!! umas pernas, um seio...à noite lá íamos de cadeira na mão para a esplanada, ver a fita e umas estrelas..
Quanto aos bailes, no nosso caso a aparelhagem era a das selecções RD, a casa a do Tozé, com poucas excepções. Havia 2 bailes garantidos: um dia de Nª Senhora, onde nos conhecíamos, com os pais entretidos com a procissão, e o da despedida, 30 de Agosto. Como a feira é a 29, tinhamos os oficiais primeiro, e por fim o nosso. A música já era diferente, Pink Floyd, um lado inteiro, Killing me softly, Procol Harum, Nazareth...Dia 31 arrumavam-se as casas,e nós ficávamos á espera da fornada de Setembro, muito mais reduzida e limitada quase só a alentejanas, menos vistosas mas bem mais fogosas do que o pessoal das capitais (Lisboa, Porto, Évora, Portalegre, Aveiro , Coimbra, que vinham só em Agosto), planeando as coisas para uma ou outra tarde chuvosa, com a praia fechada, e uma casa emprestada mesmo ali á mão.
Abraços a todos!
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