Os Bailes da Garagem do Tonito
Os episódios da minha juventude, não têm frondosos ulmeiros, choupos ou jacarandás. Não têm avós que nos sentam ao colo e nos contam intermináveis histórias cinzeladas pela patine do tempo, e que, transmitidas sabiamente, têm aquele não sei quê de magia secular, que indelevelmente nos marcam para a nossa existência.
Não têm menina de saia plissada, filha de merceeiro de bairro, que nos rouba beijos apressados, enquanto nos enche os bolsos de rebuçados de coco, na esperança de nos melar o coração.
Não têm, mas gostava que tivessem!
A minha juventude suburbana, semi-clandestina, para além de desinteressante, era feia, ranhosa e nojenta. O único pedaço de felicidade a que tínhamos acesso era consumido aos Domingos tarde dentro, nos famosos bailes da garagem do Tonito.
Era neste espaço desprovido do Opel Capitain , que decorriam as nossas aventuras dançantes de Domingo à tarde. A seguir ao almoço, o núcleo duro – eu, o Tonito, o Alfredo e o Luís – inventávamos a decoração do espaço.
Com panos, mantas, posters e o que demais houvesse ilustrávamos da melhor maneira que podíamos e sabíamos, o lugar onde mais pela tardinha haveríamos de passar o melhor pedaço da semana.
Haviam dois momentos importantes nestas matinés dançantes: a chegada do gado fémeo e a montagem do gira-discos.
O gira-discos era uma daquelas pastas de executivo – marca Colt – de onde saíam duas pequenas colunas de som, que haveriam de alimentar o vespertino ambiente sonoro com vozes que ao tempo faziam furor. O cardápio musical era amplo e democrático. Desde Beatles, Stones ou Credence Clearwater Revival, passando pelos ídolos brasileiros de então, Nelson Ned, Nilton César e o insuperável Roberto Carlos. Mas a música tocada e repetida vezes sem conta era mesmo o “Je t’aime, moi non plus” na “voz de cama” da Jane Birkin, disco que havia sido proibido, só que: depois de toda a gente o já ter adquirido.
Com a chegada do género contrário, criava-se outro momento, ora de júbilo ou de tristeza, conforme fossem as expectativas criadas em relação à presença ou não, da pessoa desejada.
Pessoalmente, passei um bocado ao lado destas expectações. Não sei se pelos meus 48 Quilos, se pelo que sempre fiquei a dever à beleza ou pela minha timidez natural. Um facto é certo. A mim, tocava-me sempre o papel de discjokey, se é que me faço entender.
Enquanto os meus companheiros se entretinham em estrafegos dançantes, onde hormonas e testosterona tinham um papel mais que importante, eu, entretinha-me a mudar os discos e a observar comportamentos.
Quando a coisa ganhava proporções que o pai do Tonito não haveria de gostar – qual Diácono Remédios – eu, mudava a música para uma coisa mais dançante e menos bafejo-rastejante.
Invariavelmente, escolhia o grupo chamado The Archies, que tinham um sucesso chamado - Sugar, Sugar - que para além de convidar à dança, servia para me divertir com um dos cromos femininos que por lá aparecia e que todos conhecíamos por “ funfenhanha” devido à deficiência profundamente anasalada da sua fala.
Quando se tocava esta música, a nossa amiga insistia em cantá-la a plenos pulmões, o que resultava muito engraçado. Era para mim o momento mais alto da tarde, exceptuando os Domingos em que a Luísa aparecia por lá para se pavonear e propositadamente não me prestar atenção.
A Luísa armava-se em importante por ter um emprego numa “boutique” do Apolo 70 - um dos primeiros centros comerciais de Lisboa – e como conseguia desviar umas roupinhas aparecia sempre muito produzida, logo muito cobiçada.
Esta minha paixão impossível, fez-me seguir-lhe o percurso até aos dias de hoje. Soube que tem 4 filhos de 3 maridos diferentes, mas que agora vive só.
Quando a noite já era entrada e os nossos pais começavam a bradaria em nossa procura, terminava o único momento da semana avidamente vivido.
E num até Domingo anunciado, recuperávamo-nos para a nossa realidade suburbana, semi-clandestina que todos sonhávamos um dia abandonar.
publicado no Jornal " O Campo" em 2002
2 Comments:
Je t'aime moi non plus, que saudades...eramos novos, sonhávamos.
Zé Manel
O Pulanito tem o condão de nos transportar no tempo até episódios da sua vida e da dos que o rodeiam com inegável capacidade literária.
Continua a surpreender-nos....
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