sábado, outubro 27, 2012

Adeus ó Fonte do Linhas!


Levantou-se mal o sol raiou. Percorreu o mesmo caminho que calcorreara vezes sem conta. Era uma espécie de chamamento. Uma vereda de espanto que o conduzia sempre ao mesmo local.

Aí chegado, despia a t-shirt que lhe cobria a magreza dos vinte anos. Arremessava os longos cabelos para trás de forma a, no movimento seguinte, os mergulhar de um só golpe nas águas cristalinas da nascente.
Depois, recobrado do choque termal, com um vigoroso movimento em espiral, atirava para as costas, a farta cabeleira encharcada. Era um ritual quase diário. Uma coisa em forma de pele que não sabia explicar.

Sentia-se deus. Poeta dos silêncios da planura. Rei Neptuno dos pegos e das ribeiras e em particular, deste local tão assumidamente seu: a Fonte do Linhas!
Amava o chão que pisava. Venerava a lonjura e a solidão. Estremecia com o naufrágio do sol naquela mar longínquo que era a linha do horizonte.

Certo dia teve de partir. Como tantos outros, foi atrás do sonho helvético duma vida melhor... como se isso fosse possível!
Ainda pensou em regressar, mas as necessidades do homem sobrepuseram-se aos devaneios do poeta.


Para se compensar, mudou mentalmente a toponímia dos corredores do armazém de viveres onde labutava. O corredor das mercearias passou na sua cabeça a Pego da Maria Jacinta, o das bebidas o do Alcorão, ao dos produtos de higiene onde predominavam os champôs apelidou-o naturalmente de: Fonte do Linhas. E assim, sem cá estar... nunca de cá saía!

 Passados anos regressou. Palmilhou ansioso o caminho que os seus passos ajudaram a alargar.
Aí chegado, julgou ter-se enganado. No lugar da nascente estava uma casa de onde era bombeada a água que da fonte brotava e que agora abastecia a população.
Uma tristeza imensa apoderou-se-lhe do peito. Passou o dia calcorreando os campos da sua crença. Embriagou-se de silêncio e liberdade. Quando pelo sereno regressou ao povoado, vindas lá do fundo duma venda, ressoavam as vozes dos homens que cantavam uma moda por si desconhecida:

Adeus ó fonte do linhas 
Já não tens água clara....

Escrito por pulanito @ outubro 27, 2012   1 comentários

sexta-feira, outubro 26, 2012

Clube da Palavra


No próximo dia 14 de Novembro irei estar no Clube da Palavra do Canal Q, um dos canais da MEO, da responsabilidade das Produções Fictícias.

Vai ser um programa gravado e que irá para o ar em data a anunciar. Vou estar acompanhado dos excelentes músicos Pedro Frias e Hélder Encarnação, que para além de serem meus amigos, também eles abraçaram este projeto.

Levarei a este Clube da Palavra alguma poesia dos vários períodos da minha existência. Como prefiro a palavra dita acompanhada de música, estão a ser ensaiados os temas que aí iremos apresentar. Se houver tempo, ainda me debruçarei sobre outros géneros literários, de preferência o do FADO, que continua a necessitar de divulgação para chegar junto de mais e mais leitores.

Vai ser um desafio interessante de que darei nota aqui e noutros canais de divulgação, para quem quiser assistir a esta performance.

Escrito por pulanito @ outubro 26, 2012   1 comentários

domingo, outubro 07, 2012

Feira de Entradas - Memórias de Ontem, Relatos de Hoje.


Hoje é sexta-feira 3 de outubro de 1962. Como eu, outras dezenas de crianças Entradenses já só pensam no domingo que está para chegar. Este é um domingo especial, é domingo de feira, acontecimento que se perde na poeira dos tempos e que eu presenciarei, desconhecendo de todo, que esta, será a derradeira Feira de Entradas.


 
 Um carrossel parecido aos de então
Gerações de feirantes aportam a esta terra, que só no último ano, perdeu para cima de duas centenas dos seus habitantes, nos anos seguintes, famílias aos magotes abandonarão a terra plana. Vão à procura do pão noutras paragens. Por ora situemo-nos apenas nestas vésperas de dia mágico para a populaça Entradense e sobretudo para as crianças que não vêm a hora de ver rolar o ondulante carrossel Araújo, ou então, o Vieira. Estes são os únicos nomes que registei na minha memória de petiz, provavelmente por ser para mim a coisa mais marcante.

Barros na feira de Castro de 1960 - Quinze dias antes estiveram em Entradas
Foto extraída do livro - Feira de Castro 1960


Os frutos secos do Algarve são as guloseimas da época. Pêros, marmelos e romãs perfumam os ares da Rua do Cinema. Os barros de Beringel nas suas diferentes formas e feitios espraiam-se no chão à espera de compradores. Latoeiros, caldeireiros, albardeiros e outros “eiros” artesãos digladiam-se em pregões tentando atrair a maralha vinda da terra e dos montes ao redor. Toda uma multidão vestida de grave e inesperadamente feliz se acotovela rua abaixo apreciando e apreçando produtos e artefactos da sua necessidade.

Vestidos de grave
Foto extraída do livro - Feira de Castro 1960


A feira estende-se pelas ruas circundantes, mas o grande motor económico deste evento anual é o comércio do gado, especialmente de varas de porcos que se esfraldam até ao moinho de mestre moleiro José Santiago.

Porcos na feira de Castro 1960
Foto extraída do livro - Feira de Castro 1960

É toda ama paisagem que se transfigura. Muitos destes feirantes já chegaram há dias. A professora na escola, dá folga aos petizes para verem chegar os mercadores. Espetáculo sempre aguardado por crianças e adultos que sentados no adro da igreja acenam de felicidade aos recém chegados a esta terra perdida no coração da planície.

 Um dos veículo da caravana chama a atenção de miúdos e graúdos. É uma velha camioneta carregada de mulheres espalhafatosas. Surgem sentadas nas lonas que lhe servirão de teto nos próximos dias. São prostitutas com as suas roupas garridas e pinturas exageradas que saúdam a multidão de jovens e velhos machos que, com a mão em concha, segredam ao ouvido mais próximo as suas preferências e projetos de libertação testicular, mal o negócio abra portas. Daqui a cinquenta anos, hei de me inspirar numa destas profissionais do sexo, para criar a personagem Rosa do romance que escreverei lá para 2012 e que se irá chamar FADO. Por agora, deixem-me usufruir do momento!

É difícil dormir com tanta coisa a acontecer lá fora. Só quero que a manhã chegue. Hei de ir chamar o Manel António, o Pardal e o Carlinhos Contreiras para irmos espreitar esse mundo novo que se nos escancara e nos acelera os corações.

Moirais e almocreves, gente que não vê gente e outros que a vêm mas é como se não a vissem, derrubam, uns atrás de outros, minúsculos copos de medronho da serra. Tentam ganhar coragem para a troco da maquia combinada expulsarem os demónios em forma de sémen que os atormentam. (Daqui a cinquenta anos voltarei a usar esta linha de pensamento, para definir o animal que carregam dentro de si!).

A fila à porta da barraca adensa-se, o corrupio do entra e sai, deixa adivinhar a este quarteto de espreitas, que a função já se iniciou. Reparo numa criança mais ou menos da minha idade que no meio desta azáfama do abotoa e desabotoa braguilhas, sai de dentro da barraca. Meio-século volvido há de se chamar Raul, segundo a minha enferma imaginação.

Este é um tempo de descoberta. Um tempo vertiginoso onde o mundo é por nós visto por um prisma caleidoscópico. Um tempo onde, inocência deixa de ser nome de freira, para passar a responder por: malícia. Razão pela qual, nossas mães, mais tarde, nos deixarão marcadas no rabo as mãos com que nos costumam acariciar o rosto. Acorrem-me à lembrança estes episódios, os que vivi e os que inventei, para vos dizer que nesse ano de 62, foi a última Feira de Entradas.
A peste suína mais a debandada da população aliada a outros factores que me escapam, fizeram com que essa fosse a última das feiras da nossa imaginação.

Cinquenta anos volvidos e integrada nas comemorações dos 500 anos da atribuição por parte de D. Manuel I do novo foral a Entradas, foi recriada. É claro que já não teve (nem podia ter!) o encanto do relato que vos deixo (até porque parte dele é invenção minha!) e, os tempos são inevitavelmente outros, apesar de os de agora se parecerem cada vez mais aos de então.

 Grupo musical animando a feira de 2012


No atropelo da maralha em tarde de folia, deparei com um conterrâneo conhecedor ao pormenor da feira de então. Logo ali me esclareceu uma lista de dúvidas que tinha em relação à anterior e centenária feira de Entradas.

De entre as curiosidades que comigo partilhou, uma me ficou retida no pavilhão auditivo. Relatou-me que em anos idos, talvez nos finais dos anos trinta, princípios dos quarenta, a grande diva Eunice Munoz , nascida na Amareleja, terá passado em Entradas uma temporada por alturas da nossa feira. Seus pais e avós, artistas itinerantes de teatro e pantomina, por aqui montaram espetáculo onde entrava uma criança, que mais tarde haveria de ser a grande referência do teatro em Portugal.

Gosto de me surpreender! Com a partilha deste episódio quase ganhei o dia. O meu amigo e patrício seguiu o seu caminho e eu apressei-me a registá-lo, não fosse a memória de novo me atraiçoar, coisa que tem feito sem parcimónia nos últimos tempos.

Segui o meu caminho a remoer na fantástica história que acabei de ouvir. A imaginação leva-me a imaginar que uma, de entre todas as cabeleiras brancas que a minha vista alcança, será a de Eunice Munoz, revisitando incógnita as suas personagens e os seus espectros.

 Do que retive, foi reviver no mesmo local e na mesma data um acontecimento, que, de algum modo me fez recuar no tempo. Registo o empenho dos e das Entradenses que arregaçaram as mangas e fizeram deste evento, um momento a congelar na memória, deixando no ar a fragrância da coragem para levar a cabo tão grandioso trabalho em tão curto espaço de tempo.

 O inevitável Pardal reviveu a velha feira no jogo das latas
Um must!

Os moldes em que a feira foi organizada, souberam a pouco. Nas conversas que se pressentiam, na franqueza dos sorrisos, nos reencontros inesperados, nos comentários calorosos, na inequívoca aprovação, na expressão feliz de cada olhar, fiquei com a impressão que foi lançada uma semente que há de germinar. Que se transformará num acontecimento regional. Que unirá e reunirá a diáspora Entradense.
 Aspecto da feira de 2012...Para o ano há mais e por mais tempo!


Ou muito me engano, ou estamos na inicio de um novo ciclo. Um novo período de vitalidade tal como aconteceu há poucos anos e, que por razões que conheço, (mas que prefiro dizer!), que a própria razão desconhece, se perdeu na bruma do tempo.


Viva Entradas!

Escrito por pulanito @ outubro 07, 2012   0 comentários

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