terça-feira, fevereiro 06, 2007

Desencanto

Agora, que todas as janelas se fecharam em estilhaços
Agora, que todas as ruas num relatório normal comunicam o vazio
E a luz é o homem só que sou eu
Andando de passeio para passeio
E a minha doença, prognóstico feito
Quando escrevia primeiro antes de sofrer
É o corredor branco de portas escancaradas
Que aponta para o norte da minha morte

Tu, minha esposa que ainda abraço
Pelo gemente sinal das recordações
E pelos primeiros beijos de jovens em tarde de primeiro amor
Encantados connosco e com o nosso corpo
De água pura e de luz tépida
Da fogueira da eterna derrota vitória
Ao combater na primeira luta

Tu já não chegas á janela
Não acenas mais que um minuto
E as palavras que trocamos
São violência e amargura
Tão pequenas e rápidas
Como a pressa da oração
No campo de todas as mortes

Agora que uma a uma
As gelosias se fecham
Os carros rareiam
E a vida é invisível até de madrugada
Eu imagino o Verão, a Primavera
O Outono, o Inverno e a estação indeterminada
Em que o encontro de um homem e de um mulher
É o beijo quente dos miúdos que fomos e nos amámos
O olhar tranquilo e apaixonado
Que não se cansa de sofrer discreto
E mutuamente o corpo do outro
E as mãos dadas para não dizer mais
Que o exterior de dois corpos

Do sangue, das mãos, das bocas, dos nervos
E da pele sequiosa de ficar nua
No relato do primeiro incêndio entre mim e ti
Eu alivio os olhos de dor fechando-os
O rumor do teu corpo que se deita
É o vento que não abate este parapeito
Em que me debruço na espera
Em que me encosto na surdina do sofrimento

Agora que a noite se fez verdadeiramente noite
Que tu adormeceste primeiro
Antes da televisão acabar
Gostava de pensar em alguém mais
Escapar às paredes desta prisão
Voltar a dizer o que dizia aos vinte anos
E ouvir as palavras de uma mulher
Que já me abraça e nem sequer nos conhecemos
E ainda não saí daqui

Destes devaneios faço as minhas noites
Mas pela manhã ainda te vou abraçar
Reparo que não sorris
Que o teu corpo não é a metade desta medalha de paixão
Onde redigo a minha mensagem
Saindo mais depressa
Combinando o regresso mas sem desejo de voltar

E se te volto a beijar e a aceitar as tuas mãos
No acaso dum raro momento
É porque todas as janelas se fecharam
Rasgando os seus vidros em estilhaços

Em todas as ruas retine o silêncio
Das horas preenchidas de vácuo
E nenhuma luz eu ilumino cirandando de bairro em bairro
Tenho tanto medo
Mais medo de ficar só
Do que só contigo.

V.V.79

Escrito por pulanito @ fevereiro 06, 2007   4 comentários

4 Comments:

At 3:53 da tarde, Blogger Helder Encarnação said...

Sem palavras...

 
At 9:11 da tarde, Anonymous Anónimo said...

Mais outra pérola do Pulanito. De vez em quando surpreende-nos com escritos destes, que pelo menos a mim, me provocam arrepios na pele, e não é que gosto!

 
At 3:55 da tarde, Anonymous Anónimo said...

O Viriato Ventura está de volta?

 
At 9:43 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Extraordinário poema. Ao nivel do Slides -Retratos da Cidade Branca.
Gostaria se pudesses de o ouvir na tua voz. Tenho a certeza de que ganharia um outro élan. A cadência das palavras que só tu sabes qual é enriqueceriam o texto que já li e reli vezes sem conta.
Vá lá. Surpreende-nos!
Rita de New York.

 

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