segunda-feira, outubro 31, 2016

A Velha Pasteleira



Este texto já passou anteriormente passou por este blogue, acontece que nunca tinha encontrado a foto ideal para o ilustrar. Como agora a encontrei, serve de pretexto para vos convidar a lê-lo ou relê-lo se for caso disso. De qualquer modo, A Velha Pasteleira, está publicado no meu mais recente livro De Coração D'Interiores.

A Velha Pasteleira
Ainda me lembro, como se fosse hoje, da sua chegada lá a casa.
Era azul. De um cintilante azul celeste. Brilhantes cromados que quase ofuscavam o olhar. Meu pai, orgulhosamente montado na sua nova bicicleta acabadinha de adquirir em Castro Verde, rejubilava de alegria (mesmo que a última prestação do pagamento da máquina fosse só daí a doze meses).

Lembro-me que tinha espelho retrovisor, campainha e guarda-lamas. A ténue luz dianteira era alimentada a dínamo: quando encostado à jante da roda da frente, girava de modo a que se produzisse o fio de luz que lhe alumiasse o caminho.

Num dos lados do quadro, a inevitável bomba de ar, sempre necessária para encher os pneus da roda vinte e oito daquele estonteante veículo.

Pendurado no selim de molas, estava a balouçante bolsa de ferramentas e utensílios, equipamento necessário à reparação dos inevitáveis e frequentes furos.

Quando o meu pai regressava do trabalho, especialmente em tardes de verão, levava-me a dar uma volta montado no suporte. Eu, pequenito, agarrava-me à sua cintura, como se quisesse abraçar o mundo e, a cada pedalada, viajava-me a imaginação para lá das aforas do permitido. A sonhar, claro está.

Dessa “pasteleira” guardo as melhores recordações. Foi nela que ainda míngua de gente aprendi a andar de bicicleta. Como não as havia para crianças, a maralha miúda lá da minha terra aprendia a equilibrar-se nestes gigantes de duas rodas, enfiando parte do corpo por dentro do quadro, o tronco quase fazendo um S de modo a criar uma forma de balanço estável, a cabeça junto ao guiador, e as mãos, muito a custo, chegando às manetes do guiador.

Depois de muitas quedas, alguns puxões de orelhas e outras tantas tareias, lá chegava o dia em que joelhos e cotovelos descansavam e nós ganhávamos asas em forma de rodas.

Estas bicicletas, a par dos carros de bestas, povoavam a paisagem e, ainda hoje, a memória de muitos de nós.

Foi numa destas bicicletas que Joaquim Agostinho se fez ciclista. João Roque, Leonel Miranda e companhia, da equipa do Sporting Clube de Portugal, em dia de treino lá para as bandas de Torres Vedras, foram surpreendidos por aquela força da natureza. Montado naquele “ferro”, sem mudanças nem caganças, acompanhava-os nas descidas e ultrapassava-os nas subidas, causando o espanto desses ídolos de então, que só descansaram quando o levaram para a sua equipa.

À minha porta passa todos os dias um velhote montado naquela que seguramente será a sua bicicleta de sempre, uma pasteleira igualzinha à do meu pai, só que de outra cor. Pedala quando o terreno é a favor, mas quando chega às subidas desmonta, alçando a perna com a máquina ainda em movimento. E continua a pé, porque os seus mais de oitenta anos já lhe consumiram grande parte das forças.

Na semana passada dei com ele desbastando umas enormes canas que colhia num canavial à beira da estrada. Vi-o amarrar talvez uma dúzia de canas, montar-se na bicicleta e colocar o molho debaixo do braço esquerdo, apenas guiando com a mão direita.

Passou à minha porta. Não, não vi um ciclista carregando um feixe de canas debaixo do braço. Vi, sim, um cavaleiro andante montado no seu corcel, investindo com a hipotética lança de doze setas contra um inimigo imaginário. Ah, a idade... esse temível adversário.

No final do verão passado, aquando da Planície Mediterrânica em Castro Verde, houve o habitual encontro de velhas bicicletas (não confundir com bicicletas velhas!), vulgo “pasteleiras”. (A esse evento, o meu amigo Filipe Pratas tem dedicado tempo e alma, redundando em certames a repetir.)

Foi então que revi, num determinado ciclista que passava, o meu pai! O meu pai chegando a casa. E eu! Eu, sentado no poial, com a cara entre as mãos, à sua espera. E ele a dizer-me.

 “Suba já o meu filho aí para o suporte que vamos dar a volta à vila”.

In De Coração D'Interiores de Napoleão Mira

Escrito por pulanito @ outubro 31, 2016   0 comentários

quinta-feira, outubro 27, 2016

Palavras Ditas

Para o Napoleão Mira.
Palavras ditas
Conheço um homem que é o sítio onde as palavras nascem. E no chão do peito há uma fonte e é lá que a boca se enche. Conheço um homem que tem um coração que é uma tesoura de cortar silêncios e fazer palavras. E do corte das lâminas nasce a voz e é lá que a boca se enche. Conheço um homem que sabe falar apenas com os gestos das mãos. Não precisa de mais nada, faz gestos com as mãos, faz desenhos no silêncio do ar com as mãos e abraça-nos com os dedos que são línguas a falar ao nosso ouvido e a derreter os nossos dias de ferro. Conheço um homem que tem poetas inteiros com esqueletos e tudo a viver dentro dele. Vivem dentro dele a fingir que estão mortos, só que não se calam dentro dele, desmorrem-se nas cordas vocais e ele é a voz dessa morte que não existe porque os poetas e os amigos de infância não morrem. Conheço um homem que tem poetas vivos a chorarem dentro dele e ele chora-lhes todo o alfabeto das lágrimas. E que grande é o alfabeto das lágrimas. Conheço um homem que tem uma voz grande e alta como uma abetarda no céu. E ao lado dela voam outros pássaros que são murmúrios e gritos e melancolia. As palavras ditas agarram-se à cintura da música e dançam e falam e desesperam. Conheço um homem que tem uma fornalha na boca para incandescer palavras.
Da lavra do meu amigo Vitor Encarnação, um poeta, escritor que o Ale tejo e o país deviam conhecer melhor.

Escrito por pulanito @ outubro 27, 2016   0 comentários

quarta-feira, outubro 26, 2016

The Times They Are A Changin


Os Tempos Estão a Mudar

Quando saiu a notícia que Bob Dylan fora galardoado com o Nobel da literatura rejubilei de alegria. O que não esperava e me deixou incrédulo, foram os comentários depreciativos de alguns escritores de renome da nossa praça.
Por exemplo: a escritora Alice Vieira escreveu no seu Facebook: — “Digam-me que é aldrabice. Digam-me que estão a gozar comigo. Digam-me que o Bob Dylan não ganhou o Nobel da Literatura”, adiantou ainda no mesmo espaço “Se fosse aos galardoados anteriores, devolvia o prémio. Juro”. E para compor o ramalhete do destrambelho de que foi possuída, ironizou: “Estou a preparar a candidatura do Quim Barreiros para o próximo ano”.
Caramba! Mesmo que ironicamente comparar o nosso bem disposto Quim Barreiros com um dos grandes mestres da palavra, é o mesmo que comparar o cú com a Feira de Castro, curiosamente, o local onde matuto nesta crónica enquanto naufrago rua abaixo neste mar de gente que desagua no largo onde esta peregrinação se repete ano após ano há quase quatrocentos deles.
Lá atrás, sopradas pelo vento (para fazer jus ao Dylan em que penso), ainda ecoam as vozes dos homens e mulheres desta terra  que perfumam de alentejanidade  o ambiente festivo que por aqui se vive.
De regresso ao agraciado dou comigo a pensar na justeza do prémio atribuído. O homem tem trinta e sete discos editados em cinquenta e cinco anos de carreira. É considerado um dos grandes poetas contemporâneos sendo a sua obra estudada em várias universidades do seu país. Influenciou múltiplas gerações de músicos e de melómanos. Combateu com a sua poesia e a sua música a política norte-americana nomeadamente a intervenção militar no Vietname. Bob Dylan é ainda para além de músico, compositor, pintor, escritor, poeta e pontualmente ator, tendo dedicado toda a sua vida à criação artística e, nas palavras de alguns nomes sonantes da nossa praça, não é merecedor do galardão em causa?
Mergulhando neste tsunami humano onde me perco, vislumbro por entre a maralha um homem de costas de guitarra ao peito e chapéu negro na cabeça.  Parece-me ser o homenageado desta crónica. Na minha assumida senilidade parece-me tocar os primeiros acordes da música The Times They Are A Changin.  Aproximo-me para me certificar do que os meus ouvidos parecem escutar.
Não é o Dylan mas sim o João Pestana, um outro  trovador  que há muito anima os dias da feira com a sua voz límpida e melodiosa.

Retornado à realidade de onde por momentos me alheara, dou comigo a rir-me de mim mesmo e penso que, lá para os lados da Suécia os tempos estão mesmo a mudar. Eu, daqui, da minha insignificante pequenez saúdo-lhes a  coragem e a clarividência.
Publicado no Correio Alentejo de 20/10/2016

Escrito por pulanito @ outubro 26, 2016   0 comentários

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