Pai.
Pai.
«Se virem o meu filho sem um livro debaixo do braço eu pago uma rodada a toda a gente!» — espicaçava assim em jeito de aposta, lá por esses idos anos sessenta, o meu orgulhoso pai. Exibia-se assim, vaidoso, junto da plateia de bebedores de vinho rasca na taberna do Vilas, nas aforas de Lisboa, local onde este jovem escriba costumava juntar as letras com que ia moldando e bebendo o seu parco saber.
É claro que nem sempre me apetecia ler; mas como o desafio fora feito à minha frente, não poderia deixar ficar mal o meu progenitor, pelo menos até que os outros habitués se lembrassem de tão invulgar afirmação.
Tanto quanto me lembro, nunca tal rodada chegou a ser paga... No caminho de regresso a Entradas, vindo do hospital de Beja, onde passei parte do dia agarrando a mão deste fio de vida em forma de gente, acorre-me à lembrança este quase anedótico episódio.
Agora comunicamos numa espécie de código de sinais, inventado no momento, e que só nós conhecemos. Também comunicamos com os olhos, quais faróis de luz baça e mortiça que ainda me encandeiam em sucessivos pedidos de ajuda.
Nos trinta e três quilómetros que agora percorro, deixo fluir o pensamento, como se fora um rio que, serpenteando os obstáculos naturais, desenha a geografia do seu trajeto, correndo desenfreado à procura da foz.
Tal como esse leito de água repetido em cada fortuito encontro da estrada, também eu me recordo de marcantes episódios que este homem feito rio, que correndo à desfilada no meu peito, desagua na memória da minha existência.
Quando ainda era apenas um riacho de gente, desenhava-me toscos porcos em pedaços de papel pardo — entretenga em forma de arte quase rupestre — esboçados à luz do candeeiro a petróleo.
Coisas de gente pobre, que rebusca na imaginação as inúmeras formas que o afecto tem para se manifestar. Depois, já ribeiro de pelo na venta, era nas suas margens que buscava a proteção para as tropelias cometidas.
Lembro-me assim a talhe de foice de algumas tareias fictícias que me aplicou, das quais destaco a famosa “não tareia” por ter, entre outros impropérios, chamado meretriz à madrinha da minha primeira namorada.
Nas turbulentas águas da juventude, foi na sua cumplicidade que encontrei porto de abrigo e, se muitas vezes não sabia como as contornar, lá no seu íntimo tinha a certeza de que haveria de voltar a esse leito familiar onde, apesar dos naturais desencontros, sempre acabámos por nos encontrar.
Deixando as analogias fluviais em que sempre viemos a confluir, vêm-me à lembrança os mil episódios que repartimos, mais como cúmplices malteses, do que como pai e filho.
Já com a torre sineira de Entradas no horizonte, recordo-me de certo episódio vivido em Alcanhões, terra por onde passou alguns anos da sua vida. Como vivia no campo, o transporte que nos levava e trazia da vila era uma velha motorizada. Era tempo de São Martinho e segundo reza o ditado: vai à adega e prova o vinho; o problema é que as adegas em Alcanhões eram mais que as mães e em cada uma delas era obrigatório o respectivo penalty da prova.
Já noite serrada e com o equilíbrio em mau estado, decidiram estes dois ébrios malteses regressar a casa já a noite era uma senhora de provecta idade. Para compor o ramalhete, a motorizada não tinha luz e a noite era um manto de breu onde nada se distinguia para além de dois palmos à frente do nariz.
Como o que tem de ser tem muita força lá nos fizemos os três ao caminho: eu, ele e... a motorizada. A única iluminação que dispúnhamos era de uma lanterna. Meu velho sentado à pendura, com uma das mãos abraçava-me a cintura e, com a outra, alumiava o sinuoso trilho. A estrada, se assim a pudéssemos chamar, mais parecia um cenário de bombardeamento do que caminho de gente. Todo o trajeto era bordeado por um pequeno rio que por aquelas bandas o povo chama de vala. Numa curva mal calculada, a memória pelo vinho novo conturbada não conseguiu guiar-nos a preceito... e zás! Fomos os três em queda livre parar à vala. Lá nos levantámos como pudemos e Deus sabe, seguindo encharcados e às apalpadelas o resto do caminho que faltava calcorrear. A motorizada, essa... só a resgatámos no dia seguinte. Destas cumplicidades feitas tropelias de moços pequenos fomos construindo o nosso espólio da memória, da qual continuo a retirar particular prazer.
Ir aos ninhos, à chinchada, à caça fortuita e tantas outras atividades menores mas ilegais, fazia de nós uma espécie de foras-da-lei de trazer por casa. Esta coisa de viver nas margens da legalidade, mais do que uma necessidade, era uma espécie de afirmação.
Um dia ofereci-lhe um pequeno painel de azulejos que mandara a propósito pintar. À medida que desembrulhava o presente, media-lhe no sorriso o contentamento que o invadia. Quando concluiu o puzzle dos azulejos, e sem que trocássemos palavra, li-lhe nos olhos a satisfação que lhe ia na alma.
«Vamos colocá-lo já de seguida!» — afirmou. Lá fizemos o cimento necessário à fixação do painel. A entrada da sua pequena propriedade passou a ostentar, então, o nome do qual se orgulhava. Ainda de colher e talocha na mão dava vários passos atrás para, noutra perspectiva, analisar a conclusão da obra e, bandeando o pescoço para um e outro lado, tentava descortinar algum erro na aplicação.
Na placa podia ler-se: “Casal do Maltês”. Estava batizado o seu abrigo, casa e quartel.
Sei que não voltaremos a viver tempos como esses. Sei e sinto que o seu tempo se está a findar e, por muito que tal me custe, tenho (eu e os meus) que resignadamente aceitar os tempos de dor e revolta que estão para vir e admitir a minha impotência face ao previsível desenlace.
Sei que falo da morte do meu pai enquanto vivo, mas esta, é para mim, a forma de lhe dizer: obrigado velho maltês… ainda um dia voltaremos juntos a “roubar cavalos!”
In Decoração D'Interiores de Napoleão Mira