José!
José, é da Conceição por parte do ventre de sua mãe; dos Geraldos por via do quinhão que o viu nascer; da Josélia por pacto há muito firmado em que juraram que um e o outro seriam a mesma coisa, e dos Ganhões, por pertencer aos homens que cantam lonjuras e planícies.
Conheci esta rara figura já lá vão alguns anos. Numa das minhas deambulações alentejanas fui dar a este povoado chamado de Geraldos, perto de Castro Verde, onde parei a viatura num pequeno largo; ao fundo, assim como quem pincela de sons o silêncio, ouvia-se o cante chão nas graves vozes dos homens da terra. Como que atraído por azougue caminho em direção à vozearia; quanto mais me aproximo mais estremeço e quando entro no pequeno estabelecimento há todo um Alentejo que se solta das gargantas dos cantadores.
Ali fico estarrecido na esperança de que o momento se eternize. Entre rodadas de minúsculos copos de tinto e pratinhos de petisco mata-borrão que Dona Josélia vai revezando de quando em vez, vão os fregueses debitando todo um cardápio de cantoria que entra noite adentro sem que nenhum de nós houvesse disso dado conta.
Ti Zé da Conceição, o anfitrião do estabelecimento, dá-se a conhecer e a curiosidade faz com que entabulemos conversa através do habitual interrogatório de que são alvo os forasteiros. De onde sou? A que família pertenço? O que faço por ali?
Desta inquirição nasceria uma amizade, que sendo como as flores frágeis, necessitaria de ser regada, coisa que faria amiudadamente e sempre que o cante que sem ser de sereia, seria uma das razões que aí me levava.
Não me recordo de alguma vez aí ter ido e que Mestre Zé estivesse de plantão ao balcão, que mal o sol começasse a dar sinais de esmorecimento, não começasse ele uma das muitas modas do seu vasto repertório.
Na minúscula taberna, não faltavam os meus objetos de culto, rifas de facas, calendários porno-brejeiros, livro de fiado e arqueologias outras onde sou vidrado. Para dizer a verdade passei neste singelo estabelecimento de vinhos & petiscos, alguns momentos de rara felicidade.
Aqui apreciei o gosto pela vida de Dona Josélia, provei do seu dedo gastronómico excelentes iguarias, comparti estórias de vidas e vivências que guardo aqui, em lugar especial, ao lado esquerdo do meu peito.
Certo dia encontrei Ti Zé da Conceição em Castro Verde que me informou do inevitável fecho da taberna, porque feitas e bem feitas as contas, estava a pagar para ter a porta aberta, e assim, fechou um dos meus locais de eleição.
Fechou, mas assim em jeito de conversa de ouvido, segredou-me que para os amigos continuaria aberta, ou seja: teria passado à clandestinidade, coisa romântica e mesmo rocambolesca a relembrar outros tempos, outros desafios que se vão esvaecendo da nossa memória.
Ainda lá voltei umas quantas vezes para saborear o cante da terra à porta fechada, ou em dias de Verão, à vespertina sombra do seu quintal.
Os indefectíveis amantes da alma canora alentejana, por lá continuaram a juntar as vozes, perfumando de sons a planície, que vá-se lá saber porquê, me dão um sentido de pertença que nunca consegui explicar.
Depois o Ti Zé adoeceu e com a sua maleita, esmoreceu a cantoria nos Geraldos.
No outro dia voltamo-nos a cruzar. Estava vestido de ganhão, e, ou vinha, ou ia para uma atuação dos Ganhões de Castro Verde, grupo coral a que pertence e onde desempenha o lugar de alto.
Recordámos tempos idos e, na luz que lhe incendeia os olhos, consegui neles vislumbrar a saudade de um tempo sem retorno.
Na balsa de palhinha que lhe adorna o uniforme, parece-me que carrega muito da sua história e dos seus sonhos, coisa que me comove, sempre que olho pessoas adentro sem licença lhes pedir.
Quando nos despedimos, Ti Zé ajeitou o lenço, compôs o chapéu, jogou a balsa para trás das costas e calçada abaixo saiu cantando os primeiros versos duma velha melodia.
No Alentejo eu trabalho
Cultivando a dura terra
Vou fumando o meu cigarro
Vou cumprindo o meu horário
Lançando a semente à terra
4 Comments:
Comecei-te a seguir por causa das tuas aventuras ciclisticas que eu tambem sou apaixonado mas que abandonei por causa de uma maleta e secalhar tambem por perguiça. Mas o que me trás aqui hoje tem haver com o facto de eu andar esmorcido com a tua ausençia eu que te presigo com toda a reguralidade já pensava: quer lá ver que o homem nos abandonou . Ainda bem que não te esqueceste de nós e vens partilhar conosco mais uma história de vida vivida no Monte dos Geraldos e com um personagem de quem sou amigo. Ah grande Nape como tu arrumas bem esta escrita com que preseteias Grande Abraço
Nascimento
caro nascimento,
às vezes a vontade de escrever não é a maior, depois, este blogue vive de temas originais e não de "cola e cuspo" como em tantos outros, e quando não tenho nada a dizer, pois, nada digo, mas prometo que aqui virei com a regularidade possivel, até porque, a primavera está a à porta, altura em que a inspiração mais me visita.
De qualquer modo muito obrigado por me leres, e assim sendo, fico com a certeza de que pelo menos tu, és meu seguidor habitual.
Obrigado por isso.
Abraço
Eu também sou tua seguidora habitual e só não andava estranho porque sei das tuas preocupações familiares, mas a mãe melhorou e ei-lo aí com uma história daquelas que eu gosto e ainda por cima com uma cantoria que não consigo ouvir sem me comover...obrigada!!!
Beijinhos da prima
Cat
Napoleão, meu caro Amigo
Tu, fazes lembrar o relógio da torre das nossas terras.Quando ele não toca todos ficam preocupados.Cá em casa já se tinha notado e comentado a tua ausência.
Felizmente estás de volta e inspirado como sempre.Quando estiveres por aqui e queiras moer o corpo diz qualquer coisa, para mim será um prazer.
Um abraço
jmatos
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