Venceslau de Santa Bárbara
No cinzentismo dos dias que correm, dou comigo a pensar que sobre mim desabou uma bruma misteriosa que não me deixa encarreirar as palavras pela ordem que o relógio cronométrico da estética me deveria impor.
Escrevo na esperança de viajar nas palavras. Mas não, sou apenas um condutor que se senta ao volante, imitando com os lábios o roncar de um motor (brrrrrrrruuurr!!), mas não sai do mesmo sitio. É assim que hoje me sinto, um inútil sem credo nem paixão; um ser inerte sem ideias que se assomem à janela do pensamento. Na verdade, não sei mesmo se chego a pensar. Apenas divago em flashes paranóicos, esquizofrénicos sem eira nem beira, sem princípio nem fim, sem verdade nem mentira, sem mim nem eu.
De repente, assim como saído dessa “avalónica” bruma matinal, começo a distinguir a figura de um ciclista. Estou na estrada que me conduz de Entradas a Castro Verde, vou em busca de notícias frescas, esse meu vício diário. No mostrador do automóvel o termómetro marca dois graus positivos e um vento norte de gelar ossos e entranhas.
São oito menos dez, é Domingo, e do meio da “sebastiânica” neblina, sobressai a figura de um homem montado numa bicicleta, pedala em direcção a nada, pedala porque é essa a sua sina, como se pagasse promessa ou alguma praga lhe houvessem rogado.
Não é a primeira vez que com ele me cruzo quando por aí pedalo, não é sequer a décima ou a vigésima, no fundo somos farinha do mesmo saco, somos carne para o mesmo canhão, somos do mesmo silêncio e do mesmo espanto.
Não sei o seu nome, mas já o baptizei de Venceslau de Santa Bárbara; Venceslau porque é nome de ciclista e Santa Bárbara porque é a sua terra, padroeira de mineiros e protectora de tempestades, sendo que a vida do meu quase virtual amigo afigura-se-me garimpada de relâmpagos e trovoadas tal qual a minha.
São oito menos dez, estão dois graus que o termómetro afirma serem positivos e Venceslau de Santa Bárbara continua a pedalar sempre de pé como as árvores, que assim morrem na dignidade dos seculares mutismos da terra.
O temeroso ciclista já tem Entradas na mira quando o volto a apanhar no regresso das minhas mercas noticiosas. Como sei que vem de Santa Bárbara de Padrões, terá começado a pedalar mal o dia raiou, apreciará a quietude dominical das ruas da minha terra e, sem se deter, fará o regresso a Santa Bárbara que dista do local onde o consegui fotografar, cerca de hora e meia a pedalar.
Voltei a não lhe conseguir arrancar mais de que um sussurrado bom dia em andamento, perdendo-lhe o rasto no voltar da esquina mais próxima, e tanto que eu tinha para lhe perguntar!
O que fará este homem saltar da cama em dia de rigorosa invernia para se jogar à estrada, dia após dia, ano após ano?
Será apenas um solitário do pedal, um viciado nos crepúsculos, um sonhador sobre rodas ou apenas um ser livre que percorre incessantemente o seu território de afeição?
Poderá ser tanta coisa! Uma coisa é certa; não será um condutor que ziguezagueia ao volante de um carro parado, imitando com os lábios o roncar do motor (brrrrrummm!) tentando escapar do estado de pré-demência que o atormenta.
6 Comments:
Maria Correia,
Abolutamente FANTÁSTICO!! LINDO mesmo.
E ao mesmo tempo uma forma de nos fazer pensar nos muitos Venceslaus que passam por nós todos os dias, e a quem simplesmente, por este ou aquele motivo, esta ou aquela desculpa, apenas não ligamos.
Parab...éns por este texto magnífico.
sCaro Napoleão
muitas vezes me tenho cruzado com esse companheiro do pedal,até pensava que fosse de Entradas pois a maioria das vezes, bem cedo e quando o espaço o permite, trocamos os bons dias ou quando tal não é possível simplesmente um levantar de braço.eu no IP2 para Entradas e ele na estrada antiga para Castro.Tem graça que a tua pergunta muitas vezes é a minha.
O que faz este homem aqui a estas horas? Um abraço companheiro.jmatos
Maria olimpia Castro,
Grande amigo Napoleão, como sempre um must! :)
Bjks
Carlos salgueiro,
mais uma vez um belo conto, abraço
Este Venceslau , chama-se Manel. Não é difícil falar com ele, desde que tenha a bicicleta parada... e sejamos nós a proporcionar-lhe conversa.
Quantas vezes os nossos raciocínios sobre os nossos semelhantes e a nossa vida colectiva, recolheriam simpatia alargada se fossem brilhantemente expostos, como foi este teu pensamento sobre o Venceslau de Santa Bárbara?
Entre a dúvida de se tratar de mais um conto ficcionado,com contornos de realidade,a certeza de um belo conto poético...à PULANITO.
Força companheiro!
jm
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