Diário de Viagem - Dia 1
Navegar é preciso
Viver não é preciso
Fernando Pessoa
Viver não é preciso
Fernando Pessoa
Diário de viagem – Dia 1
Dedicado à minha querida tia Felícia que ontem nos deixou.
Já há dias que não penso noutra coisa senão na hora de abalar estrada fora montado neste meu cavalo de ferro de duas rodas, que me dá a possibilidade de sorver as experiências que a estrada me der a provar.
Por volta das oito horas do dia 15 de Julho - quinta-feira, dei um beijo na Natália e sem olhar atrás fiz-me à estrada.
Esta é para mim uma sensação única. Sou um homem livre pedalando ao encontro do horizonte, que por hoje será Odemira – São Luís numa distância de 110 km.
Passo Lagoa onde bebo um café e onde me disponho a vencer a EN125 até às aforas de Lagos, Sinto-me bem e apesar do peso da bicicleta (viajo com a bicicleta de montanha com alforges laterais e bolsa frontal) sei que vai ser uma viagem e peras.
Em Odiáxere paro sem me desmontar para tomar umas notas e atrás de mim, três outros ciclistas que também viajam com a mobília ás costas, param e perguntam-me qual a melhor maneira de chegar ao Cabo de São Vicente.
Desmonto e logo ali nos convidamos mutuamente para tomar um café. Os três novos amigos espanhóis são dois Manuéis e um António que têm nos olhos o mesmo brilho que nos meus reconheço: o duma criança que se espanta com o mundo no voltar de cada curva que a estrada nos oferecer.
Pedalámos juntos até à entrada de Lagos, altura em que nos separámos, não sem antes lhes oferecer um exemplar do “ Ao Sul” que comigo trazia e que os deixou deveras surpreendido.
As bicicletas têm destas coisas; Estivemos juntos pouco mais de meia hora, e quando nos separámos, fiquei com a sensação de que fizera amigos para uma vida, e quase que tenho a certeza de que os nossos caminhos ainda se hão-de voltar a cruzar, tal como aconteceu com o Carneiro já lá vão quatro anos num dia abrasador lá para as bandas de Mourão.
Agora que voltei para o interior Algarvio, os carros rareiam e a vida tem um ritmo que a mim mais me agrada.
Agora, a solidão da estrada permite o recolhimento e os meus pensamentos voam para a minha querida tia que ontem fui a enterrar.
Quando partiu minha tia levou consigo um pouco de mim, mas muito dela viaja agora comigo.
Esta era a minha tia solteira que tinha nos sobrinhos uma espécie de filharada que esta visitava aos Domingos, nunca se esquecendo de nenhum por alturas do natal ou de aniversário.
Naqueles duros tempos da nossa chegada a Lisboa, era esse sorriso dominical da tia Felícia que invadia as nossas casas como se de um Sol se tratasse, trazendo vida e alegria à nossa angustiante existência.
Penso nesses primeiros tempos da minha chegada à cidade branca e, à medida que a estrada começa a empinar, começo eu a rebobinar os pedaços da minha existência nesta jornada com dedicatória especial.
Quando fiz o reconhecimento do terreno não me dei conta de que esta estrada era um osso tão duro de roer, e nem sequer me lembro deste “espinhaço de cão” que agora me derrete os músculos estrada acima e ainda por cima com um forte vento frontal que a cada duas pedaladas que dou, uma vai para a conta do vento e só a outra conta para a anulação da distância que falta vencer, e ainda tanto caminho para caminhar!
O que me vale e ameniza a jornada são os pensamentos que vou rebuscando, assim como quem entra num sótão à procura de velhas fotos, que no caso presente terão sempre como figura fundamental aquele fio de gente que eu ontem vi descer à terra.
Lembro-me dos muitos natais que juntos passámos e das inevitáveis meias que sempre me ofereceu e que agora já não tenho quem mas regale. Parece uma coisa de somenos importância, mas as meias que a tia Felícia me oferecia pelo natal era um dos presentes que mais gostava de receber.
São três da tarde. Só agora consegui chegar a Baiona, essa terra fronteiriça que divide o Algarve do Alentejo e não sei porquê sinto-me confortável neste território, agora vestido de dourado, salpicado aqui e ali por essas figuras geométricas que são as várias maneiras de compactar a palha entretanto enfardada. Se minha filha Catarina estivesse aqui, certamente diria que era o cenário ideal para uma sessão fotográfica de forte impacto cromático.
Ao quilómetro oitenta aparecem as primeiras cãibras, o que me deixa preocupado, até porque ainda há muita ladeira para galgar e não quero de modo nenhum ficar na berma da estrada.
Em Vale Juncal entro numa velha taberna para me reabastecer de líquidos e conversar com a proprietária que me diz estar em vias de fechar portas por falta de viabilidade do negócio.
Nisto reparo que na parede tem afixado um anúncio que diz “ Massagem desportiva” Bombeiro de Odemira telefone tal…pensei que a minha tiazinha lá estava a fazer das dela, agora que está lá em cima no bem-bom podia comandar o destino dos outros.
Lá guardei o número do telefone para onde inadvertidamente tinha ligado. Passados 30 minutos ouço do outro lado uma voz feminina que me dava conta ser ela a massagista Tânia. Disse-lhe que caso necessitasse dos seus préstimos lhe ligaria antes de chegar a Odemira.
Volto a pedalar estrada acima e penso: “ mas isto não tem fim!”..Por esta altura as dores nos ombros e omoplatas, mais as cãibras e o cansaço quase dão cabo de mim, quem me volta a socorrer com mão invisível é de novo minha tia que agora está no meu pensamento num cenário que jamais esquecerei: o meu segundo casamento. Sim, porque ela ia a tudo o que fosse festa e é claro que também esteve no primeiro.
Por essa altura já deveria de ter setenta e muitos anos e eu só me recordo de a ver dançar todo o tempo em que a "balhação” teve lugar, coisa que entremeava com uns copinhos de vinho do Porto de que gostava particularmente.
As amigas e colegas da Natália adoptaram-na de imediato e de cada vez que revíamos as fotos do nosso enlace a figura que sobressaía era a da inevitável tia Felícia.
Estou a chegar a Boavista dos Pinheiros nas aforas de Odemira e decido-me a telefonar à Tânia, que me responde do outro lado da linha estar livre daí a meia hora, mais ou menos o tempo que demorarei a lá chegar.
Da Boavista dos Pinheiros a Odemira é sempre a descer, mas para chegar aos bombeiros é preciso galgar uma rampa que assim a modos de últimas pedaladas se me afigura uma sobremesa muito calórica nesta refeição que tem sido pedalar há horas sem fim.
Pedi aos bombeiros que me deixassem tomar banho, coisa a que acederam com a hospitalidade alentejana que se lhes reconhece e um deles depois do banhito lá me levou ao gabinete da Tânia.
Lá lhe contei as minhas mazelas de pernas e ombros, coisa a que respondeu « vamos lá a ver o que se pode fazer» e durante hora e meia esta rapariga das mão miraculosas e com paciência de monge lá me foi pondo no lugar aquilo que estava deslocado.
Lá me foi contando que esta era a sua vocação e que, contra a vontade dos pais, lá tirou o curso que agora lhe permite trabalhar, mas que para além disso ainda era agricultora em part-time, semeando uns bons milheiros de batata-doce e amendoim.
Fiquei boquiaberto com a tenacidade desta moça de pele de cenoura, que lá me foi dizendo que folgas não tem, que o que gosta mesmo de fazer é trabalhar e que dali seguia directamente para casa, para amassar uma quantidade assinalável de farinha (para cerca de 200 pães) coisa que lhe levaria toda a noite de sexta-feira, para, sem dormir os ir vender sábado de manhã à “ reforma agrária” juntamente com outros produtos hortícolas de sua criação, neste particular Tânia tinha a ajuda da mãe e da irmã, já que fazer sete fornadas de vinte e tal pães é coisa para doer um bocado se for uma pessoa só.
Saí dali embevecido com a tenacidade desta moça, e pensei que se houvessem muitas com a têmpera desta Tânia, este país podia perfeitamente ter outro futuro.
Esperei por mano Pedro no centro da vila e dali fomos jantar a uma tasca de Odemira umas belas espetadas de lulas. Quando cheguei ao Monte das Dubadoiras, sua casa, já não era eu que ali estava, mas sim o espírito da minha tia Felícia que sobre mim pairava, dando-me um beijo de boa noite e desejando-me sonhos felizes.
3 Comments:
Um a zero a favor do Nap.
Napoleão, faz uma boa viagem.
Celeste
"Um a zero a favor do Nap"
Pudera!
O gajo este ano até tem massagens "desportivas":)
Se isto continuar assim,por aí a cima ,também vou aos bombeiros reclamar banhos e ajuda fisiátrica.
CARNEIRO,lembras-te daquela música clássica dos túneis"NINGUÉM PÁRA O NAP!NINGUÉM PÁRA O NAP!":)
VAI TRABALHAR MALANDRO QUE A MALTA ESTÁ DE FÉRIAS!
ups!
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