Feira de Castro - retalhos da memória
Está uma respeitável senhora, esta multissecular Feira de Castro.
Com mais de quatro séculos de vida, este tem sido ao longo dos anos um acontecimento anual que marcou, e continua a marcar, o calendário mais a sul, com lugar assegurado para o terceiro fim de semana de Outubro de cada ano das nossas vidas e de outras vidas passadas.
Quando era fedelho de calçanito de peitilho e ranho no nariz, nunca me foi dada a oportunidade de presenciar ao vivo este grandioso evento. Ao tempo, contentava-me com alguma estrela de figo e amêndoas que me era ofertada ou, em ano de maior desafogo, por um carrinho de lata, que para além das brincadeiras que me proporcionou, também me deixou a sua indelével marca, ao cravar-me no braço o guarda lamas de chapa afiada que me fez um lanho de que ainda hoje guardo memória em forma de cicatriz.
Apesar da mecha com que se vive nos dias que correm, a Feira de Castro continua a ser uma data incontornável para qualquer alentejano que se preze. Esta é uma altura sempre esperada para os inevitáveis reencontros, qual jogo sem regras a que nos predispomos, ao atravessar de lés a lés o espaço a esta feira consignado.
Ao embrenharmo-nos naquele mar de gente, passamos a fazer parte do cardápio multifacetado de visitantes que, a cada ano que passa, se tornam mais diversificados.
Já por aqui se vêm muitos estrangeiros – visitantes e residentes -; vendedores e vendilhões de múltiplos credos e cores; montanheiros; serrenhos e imigrantes; novos e velhos ricos e pobres aos montes mas, sobretudo, os incontornáveis ciganos, essa orgulhosa nação que são desde sempre a alma da feira.
Com a sua chegada às aforas dos povoados das redondezas, começa o pandemónio para as populações locais. Crianças, gado e criação são de mais perto vigiados, até porque a distância a que cada uma das partes se reserva não dá lugar a qualquer tipo de aproximação, o que faz com que a desconfiança e o alerta seja o estado em que os residentes vivem enquanto a prol nómada não arranca ferro.
Esta é uma altura em que determinadas compras especiais se continuam a fazer na Feira de Castro. O cheiro dos peros inunda o ar de um perfume só experimentado por esta altura do ano. As castanhas, nozes, avelãs, figos e demais frutos secos são uma gulodice e um desafio à resistência do visitante.
Nos tempos que correm, esta é provavelmente a única feira onde ainda se encontram mantas, safões e pelicas, varejos e escadas para a azeitona, bancos para malas, tábuas de estender massa, tabuleiros para o pão, pás de forno, cadeiras, etageres, camilhas e outros artefactos de madeira que fazem a delicia dos novos visitantes.
De entre as manobras clássicas de uma viagem à feira, não podia deixar de recomendar vivamente uma refeição num dos restaurantes ambulantes. Não o digo pela qualidade da comida ou do serviço, mas pela viagem que fazemos aos nossos sentidos.
Do vasto cardápio podemos eleger frango assado ou, caso não apreciemos.....frango assado!!. Enquanto agarrados à perna, asa ou peito do bicho, presenciamos o caudal deste mar de gente que acode ano após ano à feira, ao mesmo tempo que ouvimos o estridente e inevitável relato do speaker de serviço da atracção que dá pelo nome de poço da morte: enquanto o artista rola uma velha e barulhenta moto sobre dois rolos, o locutor apela ao visitante que assista ao espectáculo.
- Suba, suba, já faltam poucos minutos para começar. Venha assistir a este deslumbrante espectáculo. Coragem, arrojo e total desprezo pela vida [neste momento o motociclista retira as mão do guiador e sobe a pés juntos para o assento imitando a figura de Cristo]. Suba e veja com os seus olhos o maior espectáculo do mundo..suba..suba!!
Direccionando o ouvido mais para a esquerda, ouvimos o inevitável vendedor de cobertores e outras bugigangas (com que vai carregando o ajudante), que custam em qualquer lado, segundo as suas palavras, cinco ou dez vezes mais do que ali.
- Porque compramos directamente ás fábricas da Covilhã. Porque não temos lojas chiques, nem empregados pagos a preço de ouro. Só temos este aqui, com cama, mesa, roupa lavada, mulher para dormir e enxada para cavar [nota de humor].
Cinco dedos temos na mão senhoras e senhores, e nenhum é igual [verdade inquestionável]. Aqui não paga mil, nem novecentos, nem oitocentos, nem sequer quinhentos, e para quem tiver quatrocentos, para além destes cinco cobertores, mais o jogo de cama, ainda leva este magnifico faqueiro, um guarda chuva automático porque na feira sempre chove, etc., etc.
Este e outros discursos “da banha da cobra” ilustram a paisagem sonora da feira, o que enriquece o momento. Quando termina, deixa sempre uma sementinha que demora um ano a germinar e que, a cada ano que passa aqui a vimos de novo plantar.
Esta é sempre uma altura do ano em que se estabelecem comparações: “dantes é que era”; ”vinha gente de todo o lado”; “as barracas de bebidas plantadas á beira da estrada da saudosa feira de Entradas, só se levantavam depois da Feira de Castro”. Aí não era raro cantar-se ao despique até a manhã raiar. Os mais velhos recordam uma tal Zéfinha cantadeira que bebia vinho e aguardente que nem um homem enquanto dava o mote referente ao momento:
Ó Castro se fores à feira
Trás-me de lá um assobio
Ou de lata ou de madeira
Trás-me de lá um assobio
Ó Castro se fores à feira
Já que estamos em maré de recordações, havia um velho da minha terra que dizia: “ao Madeirinha do Monte dos Merendeiros quando lhe perguntavam porque não trazia a mulher à feira, ele respondia: - Então pra quem!? Divirto-me pela metade e gasto o dobro!”.
Este personagem gostava tanto desta feira, que o seu pai, quando por ele lhe perguntavam, sempre dizia: “Enquanto ‘tiver um pau tanxado, para o meu filho a feira não acaba”.
A feira continuará a ser, em termos económicos, a data marcante da região das terras brancas, tendo sido recentemente beneficiada com obras de vulto (sempre discutíveis e ainda bem!), de que pessoalmente gosto. Estes benefícios trouxeram a este espaço uma nova dignidade, tanto plástica como prática, bastando dizer-se que já não regressamos de botas enlameadas, o que é um sinal de forte melhoria das condições.
A feira tem desde há largos anos um programa paralelo de âmbito cultural, do qual destacamos o desfile de grupos corais e o encontro de baldão. Estas actividades vêm enriquecer de sobremaneira o inevitável terceiro fim-de-semana de Outubro do resto das nossas vidas que dá pelo nome de Feira de Castro.
Com mais de quatro séculos de vida, este tem sido ao longo dos anos um acontecimento anual que marcou, e continua a marcar, o calendário mais a sul, com lugar assegurado para o terceiro fim de semana de Outubro de cada ano das nossas vidas e de outras vidas passadas.
Quando era fedelho de calçanito de peitilho e ranho no nariz, nunca me foi dada a oportunidade de presenciar ao vivo este grandioso evento. Ao tempo, contentava-me com alguma estrela de figo e amêndoas que me era ofertada ou, em ano de maior desafogo, por um carrinho de lata, que para além das brincadeiras que me proporcionou, também me deixou a sua indelével marca, ao cravar-me no braço o guarda lamas de chapa afiada que me fez um lanho de que ainda hoje guardo memória em forma de cicatriz.
Apesar da mecha com que se vive nos dias que correm, a Feira de Castro continua a ser uma data incontornável para qualquer alentejano que se preze. Esta é uma altura sempre esperada para os inevitáveis reencontros, qual jogo sem regras a que nos predispomos, ao atravessar de lés a lés o espaço a esta feira consignado.
Ao embrenharmo-nos naquele mar de gente, passamos a fazer parte do cardápio multifacetado de visitantes que, a cada ano que passa, se tornam mais diversificados.
Já por aqui se vêm muitos estrangeiros – visitantes e residentes -; vendedores e vendilhões de múltiplos credos e cores; montanheiros; serrenhos e imigrantes; novos e velhos ricos e pobres aos montes mas, sobretudo, os incontornáveis ciganos, essa orgulhosa nação que são desde sempre a alma da feira.
Com a sua chegada às aforas dos povoados das redondezas, começa o pandemónio para as populações locais. Crianças, gado e criação são de mais perto vigiados, até porque a distância a que cada uma das partes se reserva não dá lugar a qualquer tipo de aproximação, o que faz com que a desconfiança e o alerta seja o estado em que os residentes vivem enquanto a prol nómada não arranca ferro.
Esta é uma altura em que determinadas compras especiais se continuam a fazer na Feira de Castro. O cheiro dos peros inunda o ar de um perfume só experimentado por esta altura do ano. As castanhas, nozes, avelãs, figos e demais frutos secos são uma gulodice e um desafio à resistência do visitante.
Nos tempos que correm, esta é provavelmente a única feira onde ainda se encontram mantas, safões e pelicas, varejos e escadas para a azeitona, bancos para malas, tábuas de estender massa, tabuleiros para o pão, pás de forno, cadeiras, etageres, camilhas e outros artefactos de madeira que fazem a delicia dos novos visitantes.
De entre as manobras clássicas de uma viagem à feira, não podia deixar de recomendar vivamente uma refeição num dos restaurantes ambulantes. Não o digo pela qualidade da comida ou do serviço, mas pela viagem que fazemos aos nossos sentidos.
Do vasto cardápio podemos eleger frango assado ou, caso não apreciemos.....frango assado!!. Enquanto agarrados à perna, asa ou peito do bicho, presenciamos o caudal deste mar de gente que acode ano após ano à feira, ao mesmo tempo que ouvimos o estridente e inevitável relato do speaker de serviço da atracção que dá pelo nome de poço da morte: enquanto o artista rola uma velha e barulhenta moto sobre dois rolos, o locutor apela ao visitante que assista ao espectáculo.
- Suba, suba, já faltam poucos minutos para começar. Venha assistir a este deslumbrante espectáculo. Coragem, arrojo e total desprezo pela vida [neste momento o motociclista retira as mão do guiador e sobe a pés juntos para o assento imitando a figura de Cristo]. Suba e veja com os seus olhos o maior espectáculo do mundo..suba..suba!!
Direccionando o ouvido mais para a esquerda, ouvimos o inevitável vendedor de cobertores e outras bugigangas (com que vai carregando o ajudante), que custam em qualquer lado, segundo as suas palavras, cinco ou dez vezes mais do que ali.
- Porque compramos directamente ás fábricas da Covilhã. Porque não temos lojas chiques, nem empregados pagos a preço de ouro. Só temos este aqui, com cama, mesa, roupa lavada, mulher para dormir e enxada para cavar [nota de humor].
Cinco dedos temos na mão senhoras e senhores, e nenhum é igual [verdade inquestionável]. Aqui não paga mil, nem novecentos, nem oitocentos, nem sequer quinhentos, e para quem tiver quatrocentos, para além destes cinco cobertores, mais o jogo de cama, ainda leva este magnifico faqueiro, um guarda chuva automático porque na feira sempre chove, etc., etc.
Este e outros discursos “da banha da cobra” ilustram a paisagem sonora da feira, o que enriquece o momento. Quando termina, deixa sempre uma sementinha que demora um ano a germinar e que, a cada ano que passa aqui a vimos de novo plantar.
Esta é sempre uma altura do ano em que se estabelecem comparações: “dantes é que era”; ”vinha gente de todo o lado”; “as barracas de bebidas plantadas á beira da estrada da saudosa feira de Entradas, só se levantavam depois da Feira de Castro”. Aí não era raro cantar-se ao despique até a manhã raiar. Os mais velhos recordam uma tal Zéfinha cantadeira que bebia vinho e aguardente que nem um homem enquanto dava o mote referente ao momento:
Ó Castro se fores à feira
Trás-me de lá um assobio
Ou de lata ou de madeira
Trás-me de lá um assobio
Ó Castro se fores à feira
Já que estamos em maré de recordações, havia um velho da minha terra que dizia: “ao Madeirinha do Monte dos Merendeiros quando lhe perguntavam porque não trazia a mulher à feira, ele respondia: - Então pra quem!? Divirto-me pela metade e gasto o dobro!”.
Este personagem gostava tanto desta feira, que o seu pai, quando por ele lhe perguntavam, sempre dizia: “Enquanto ‘tiver um pau tanxado, para o meu filho a feira não acaba”.
A feira continuará a ser, em termos económicos, a data marcante da região das terras brancas, tendo sido recentemente beneficiada com obras de vulto (sempre discutíveis e ainda bem!), de que pessoalmente gosto. Estes benefícios trouxeram a este espaço uma nova dignidade, tanto plástica como prática, bastando dizer-se que já não regressamos de botas enlameadas, o que é um sinal de forte melhoria das condições.
A feira tem desde há largos anos um programa paralelo de âmbito cultural, do qual destacamos o desfile de grupos corais e o encontro de baldão. Estas actividades vêm enriquecer de sobremaneira o inevitável terceiro fim-de-semana de Outubro do resto das nossas vidas que dá pelo nome de Feira de Castro.
Crédito fotográfico: a outra margem
11 Comments:
é já a partir de amanhã.
fui apanhada desprevenida, porque me esqueci que este ano outubro entrou a um domingo, mas não faltarei.
e as fotos ficam aqui lindamente. fizeste bem em as ir lá buscar. a ver se este ano tiro mais :)
Amigo catatau, creio que essas matinés há muito que acabaram, mas a feira continua pujante, digna e acima de tudo popular, apesar de ( pelo menos este ano) o poço da morte não ter parecido. Ainda procurei alguma banca de " vermelhinha" mas também não vislumbrei.
Andei por lá...fiz umas fotos, poderás vê-las aqui ainda hoje..
vai aparecendo...
Nunca fui á feira de Castro! Claro que fui á de Ferreira, e pergunto se ainda haverá bacalhau frito, 2 circos, carrinhos de choque,infindáveis mesas de matrecos, a barraca da sopa dos pobres, mas a minha feira era a da Zambujeira, a 29 de Agosto. Perdoem-me os chaparrões, mas a tripla interface serra/mar/alentejo produz fenómenos singulares: banca de gaitinha( par/impar/23456,o 1 sai á casa), banho do gado vacum na praia antes de entrar na feira, a feira do gado de manhã, piq-nic na rochas, indigestão, o trágico acidente, por afogamento, despenhamento da falésia do autocarro,facada... Barracas de tudo, até a das putas que chegavam a ser 3 e um ano veio paneleiro mulato e tudo, carrocel com nelson ned (quivocêvaifazerdomingoátarde?) e roberto carlos (comigouaconteceugostardanamoradaduamigomeu), mas o melhor era o BAILE!! E elas! Entre a coquette de férias e a morena da serra, sem muito tempo e com muita vontade!
Foi num desses que me estrei, 14 anos em 1974, fantástico!!!
desculpem as memórias, é porque as tenho! Resta voltar pó monte a cavalo na zundap, com o penico á banda, e a estrada aos SSS...
Ps: por acaso o catatau não era o amigo do Zé Colmeia?
Amigo Tim, ainda bem que continuas a derramar descrições fabulosas, neste caso, absolutamente fantástica da feira da Zambujeira.
Ainda bem que existem, mesmo na era do plástico e das imitações de pret-a-porter, até irritante barraca das cassetes me começa a deixar saudades...
Não faço ideia de quem seja o Catatau, mas se calhar tens razão..
E o Brasil como Foi?
Adorei as fotos especialmente a do vendedor da banha da cobra,faz-me lembrar com nostalgia os meus tempos de criança em que a feira de castro era um acontecimento deveras importante e imperdivel. A
minha avó não perdia uma e ainda me lembro do meu avô a beber a sua
«mine» na barraca do frango assado
depois de fazer negócio com os «al-
garvios de má raça» como se dizia na altura,era na feira de castro que se comprava a amêndoa e o figo
que depois nas matanças do porco era fundamental para acompanhar com o copinho de medronho...Há uma coisa que me deixou uma certa curiosidade,o que são as vermelhinhas? Bom tenho que ir que o meu amigo Zé Colmeia tá a chamar-me...
A vermelhinha é um famoso jogo de feira, jogado com três cartas, que com a conivência de um ou mais comparsas leva os incautos papalvos a perder muito dinheiro. o " croupier" primeiro faz a coisa facilitada e deixa o otário ganhar uma ou duas vezes, depois quando a aposta é a doer num passo de mágica ou de ilusão óptica limpa o guito aos apostadores que cada vez apostam mais na espectativa de reaver o dinheirinho entretanto surripiado.
para quem está de fora é um excelente espectáculo.
Foi numa ida ao poço da morte que o meu marido me enfeitiçou. Com medo que a moto saltasse este agarrou-me com os seus fortes braços. O meu corpo estremeceu. Já passaram alguns anos mas, ao ler a crónica lembrei-me desse momento que marcou até hoje a minha vida.
Nunca mais nos largámos. Casámos temos 2 filhos e a nossa vida corre como o poço da morte: sobre rodas, mas com o equilibrio correcto.~
Manda mais...
Oi pessôaU!!
BEm me precia que Catatau era o ursinhoamigo do zé colmeia! Vemelhinha: 3 cartas, duas pretas e uma vermelha, (espadas e copas, p.ex), mostram-se virada para cima, em fila sobre uma mesa( ou lata, ou banquinho); iram-separa baixo e baralham-se como o dominó, ficando outra vez em fila, mas viradas para baixo (lembram-se da Memória?) por cima e cada carta, poe-se o guito, a vermelha paga a dobrar, as pretas perdem....
Amigo Pulanito, Brazis há mutos, e este não era do meu total agrado, embora as pessoas sejam sempre muito simpáticas e boas.
A Feira não tinha Poço da Morte e Vermelhinha, mas tinha a Banda, o Cante, ... e a PUMADA. lol
Uma abraço tb
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