Ainda ás voltas com a volta!
Este não era o meio de transporte mais popular. Carros de bestas e bicicletas eram o meio de locomoção mais utilizada pela generalidade da população.
Ainda me lembro do dia em que meu pai entrou em casa com a nova bicicleta adquirida a prestações em loja da especialidade em Castro Verde.
Era uma “ pasteleira” equipada com selim de molas, malinha de ferramentas em cabedal, guarda lamas, bomba de ar, campainha e luzes traseira e dianteira accionadas à força de pedal através de dínamo.
Como bicicletas para criança não existiam, os fedelhos da minha idade aprendiam a andar nas ditas, enfiando parte do corpo dentro do quadro, e assim numa rara forma de equilíbrio e após um sem número de quedas, lá começavam a dar as primeiras pedaladas.
Foto ilustrativa dessa aprendizagem, baseada no trambulhão e nas pernas carregadinhas de óleo da corrente- Foto gamada do Xiclista em 09 /08
Vistos de frente e ao longe, apareciam no cimo da rua compondo um estranho V formado por dois corpos estranhamente entrelaçados que formavam uma figura assaz invulgar.
Os mais afoitos, já se aventuravam fora da vila e até faziam corridas na “estrada nova” que é hoje um caminho agrícola, mas que os da minha idade, assim continuam a chamar.
Depois roubaram-me ao Alentejo e fiquei sem bicicleta, que por sinal foi coisa que nunca possuí até á idade adulta.
Nos verões da minha existência suburbana lisboeta, acompanhava-se via rádio a volta a Portugal em bicicleta. O relato apaixonado do comentador transmitia-nos a imagem sonora do que estava a acontecer, e claro que a narração da subida da Serra da Estrela era altura para o país praticamente parar e escutar as façanhas de nomes como: Leonel Miranda, Joaquim Andrade, Fernando Mendes, os irmãos Corvo entre outros, e um pouco mais tarde o fabuloso Agostinho.
As nossas brincadeiras de então, eram essencialmente tentativas de reprodução daquilo que vivíamos. No tempo do futebol, pois jogávamos à bola, no do hóquei arranjávamos uns setiques improvisados e uma bola de trapos de menor dimensão e lá jogávamos hóquei em patins, mas sem patins - não confundir com hóquei em campo – e no tempo do ciclismo corríamos de bicicleta, mas, sem bicicleta.! A fórmula que encontrávamos era construir em arame guiadores de bicicleta de corrida – com travões e tudo – e desatávamos a correr com o tal objecto nas mãos, sem nunca esquecer de construir no mesmo material o respectivo capacete para dar mais realismo à coisa, sendo que às vezes este se transformava em coroa de espinhos, aquando das inevitáveis quedas do pelotão.
Tínhamos: contra-relógio, prémio de montanha, etapas e prémio para o vencedor da volta ao bairro que era invariavelmente um pacote de bolacha baunilha e uma laranjada Cirel, prémio este patrocinado por algum adulto, ou surripiado por um de nós na mercearia mais próxima.
Com o passar dos anos, passei a ir anualmente assistir à famosa subida da Carriche, ladeira que dá entrada em Lisboa e que geralmente só os mais fortes e preparados tinham coragem para nela sozinhos se afoitarem. De ouvido no transístor de algum adulto, impunha-se a pergunta sacramental. Quem é que anda fugido?
Emocionava-me o facto de um ciclista se isolar ao pelotão e tentar a sua sorte, tendo em vista uma chegada solitária bem como os efémeros momentos vividos na glória do instante na consagração da meta.
Noutros anos, "pendurava-me" nalgum adulto e pedia-lhe que me levasse com ele a Alvalade, esse Estádio mítico equipado com velódromo, no qual durante anos a fio terminava a Volta a Portugal. Após a chegada de todos os ciclistas, havia a inevitável invasão de pista e confraternização com os semideuses do pedal.
Numa dessas chegadas, munido de papel e caneta, decidi pedir um autógrafo a um desses heróis de que não recordo o nome. Passou-me a mão pela cabeça e disse: Eu dava-to, mas infelizmente não sei escrever!
Continuei durante todos os restantes anos da minha vida a acompanhar esta mítica prova, renovada a cada ano por novos ases do pedal, até que no ano do meu cinquentenário, decidi sentir na pele o esforço que é percorrer no selim duma bicicleta – na mesma altura em que decorria a lendária prova – ao aventurar-me numa volta solitária de cerca de mil quilómetros de que abaixo poderão ler relato pormenorizado, e já agora comentar.
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