Alentejanando
Para ilustrar o que digo, aqui deixo em forma de relato as múltiplas actividades que preenchem o meu fim-de-semana alentejanando.
Sexta-feira.
O tempo, é um cavalo que galopa incessantemente sem se deter, por isso há que montá-lo e desfrutar do gozo que este nos oferece, cuja maior virtude é fazer-nos sentir vivos, que para além de ser o contrário de estar morto, (sic) é também a grande aventura dos sentidos.
Escrevo à sombra do Chaparro do Pernas, um sobreiro centenário em que me revejo e se por acaso um dia cá voltar em forma vegetal gostaria de a ele me assemelhar: altivo e solitário, frondoso e gentil, contemplativo e generoso, intemporal e poderoso.
Chaparro do pernas
Sexta-feira à tarde. Bebo um rebanho de minis para celebrar a minha chegada. Conversa de bola e de outros temas desinteressantes, mas, a que as minis vão dando relevância à medida que as minúsculas e enganadoras garrafinhas se vão acomodando no tampo da mesa até preencherem a sua quase totalidade. Quando tal acontece, sabemos que está na hora de ir jantar.
Sábado.
Pela manhã vou ao Barrinho apanhar um balde de azeitona verdeal para adoçar. Quando lá chego e inspecciono as oliveiras desta qualidade, reparo que um ou mais amigos do alheio se me adiantaram, colhendo toda a azeitona que estava onde a mão chegava, restando somente a que ficou fora deste alcance e que necessita de escada para lá chegar.
Ir á azeitona é um ritual de família que fazemos todos os anos. Somos normalmente quatro ou cinco, levamos escadas, panos enormes que estendemos debaixo das oliveiras. Enquanto dois sobem à copa das oliveiras e ripam o fruto, os outros apanham, separam e ensacam o produto desse ripanço.
É do cimo da oliveira que alguém começa uma tímida “moda”, para logo ser seguido pelos outros, até porque a coisa leva-se melhor se for cantada, sendo que é por esta altura que revisitamos o cancioneiro da nossa memória, onde o cante evocativo desta actividade é o mais requisitado.
Almoço, jantar de grãos. Pode parecer um contra-senso, mas não é! No Alentejo almoçamos muitas vezes “ jantarinhos”, bem como fazemos café na “ chocolatêra”, e onde andar sem chapéu se diz “ dencabelo” e sem roupa “ dempelão” só para ilustrar algumas das diferenças que nos distinguem e enriquecem.
A seguir ao almoço rumo a S. Cucufate fotografar paredes da ruína da Villa Romana que quero reproduzir no meu quintal, bem como reorganizar este espaço com a ajuda do meu amigo Raul que há-de pôr no papel as ideias que formos entretanto maturando, mas que definitivamente serão uma mistura de romano com árabe utilizando materiais e técnicas que sendo ancestrais, serão novidade no que diz respeito ao resultado plástico a conseguir, de que já lancei repto ao amigo Soares que sendo oficial do seu oficio gosta de desafios que lhe proporcionem fazer um trabalho com assinatura.
Regresso a Entradas a tempo de ver o Entradense evoluir no pelado em desafio amigável e de apresentação do plantel contra o Castromarinense, formação da raia algarvia, que veio abrilhantar este acontecimento.
Entradense em acção
Estas coisas da bola acabam geralmente na Sociedade Recreativa, local sede do clube e onde entre outras actividades, se comem excelentes patuscadas regadas a “ Navegante Tinto” ou coisa equiparável. Para o caso fui convidado para uma mesa onde se petiscava “pato real” que por sinal estava excelentemente cozinhado.
Como a conversa gira à volta de temas desta natureza, surgiu de imediato o convite para no dia seguinte deitar abaixo uma cabidela de galo criado ao deus dará atrás dos quintais, por sinal a melhor maneira de criar esta bicharada, exceptuando ( por razões óbvias) as alturas em que os ciganos acampam nos aforas do povoado.
Domingo
Seis da manhã. Não consigo dormir. Levanto os ossos da cama e decido ir para o campo ver a bicharada e dar um passeio sempre retemperador.
Contra o que é habitual e apesar de ter calcorreado dezenas de quilómetros, não consigo avistar qualquer dos exemplares que povoam a planície, com especial relevância para as lebres e perdizes que por estes lados são mais que as pedras – só para ilustrar a alarvidade com que os alentejanos exageram em certos assuntos.
Perto da Ribeira de Cobres, avisto finalmente um bando de perdizes, o que faz com que fique mais aliviado.
Bando de perdizes
Ao deambular pelas margens da ribeira, recordo-me de conversas de taberna em que eram relatados feitos de valentia que tinham que ver precisamente com os terrenos agora secos que vou pisando.
Recordo-me de uma em particular, que contava o destemido feito de certo lavrador, cujo monte ficava do outro lado da ribeira, só que esta ia cheia e com uma fortíssima corrente e este não conseguia atravessar com a besta e o carro em que se fazia transportar. O contador pede aos outros convivas que confirmem o relato e prossegue a sua narração gabando a coragem do conterrâneo que tinha a particularidade de não saber nadar.
Como o que tem de ser tem muita força, este valente alentejano decide-se então atravessar a ribeira a pé e por debaixo de água, puxando pelo renitente animal que por sua vez puxava o carro carregado de haveres.
A ribeira deveria levar aí uns 3 metros de altura na parte mais funda.
Quem ficou deste lado a ver para poder contar, ficou aterrado ao ver desaparecer homem, besta e carro, mas mais surpreendido ficou, ao vê-los reaparecer (encharcados é certo) do outro lado da ribeira. Primeiro o homem que segurando as rédeas puxava para fora da fortíssima corrente, animal carro e carga.
Agora, o pormenor delicioso desta magnifica história: Porque não foram eles arrastados pela poderosa corrente?
Porque o carro ia carregadíssimo e esse facto protegeu-os de serem arrojados rio abaixo. Acho esta descrição absolutamente aprazível! Estou a imaginar isto a 3 metros de profundidade com uma corrente fortíssima: Um homem puxando um animal, que por sua vez puxa uma carroça carregada de mercadorias e o relator a procurar explicações lógicas para o inexplicavel!
Fico abismado com estes relatos heróicos que são contados com veemência tal, que não deixam margem a contraditório, tanto mais que são suportadas em testemunhos de falecidos e íntegros avós, que não deixam outro espaço que não a concordância com tamanha façanha.
De repente lembro-me de Marraquexe e da famosa Praça Djemaa el-Fna, património mundial da oralidade, onde contadores de histórias reúnem à sua volta dezenas de árabes que bebem daqueles homens um saber que raia o encantamento.
Também eu me juntei a uma dessas rodas e sem perceber patavina do que o árabe contador dizia, lá fui lendo nos gestos que fazia. Provavelmente façanhas de guerreiros de turbante, que acabados de chegar do deserto ou das montanhas relatavam perigos e proezas que tinham vivido, sonhado ou inventado, algumas delas seguramente parecidas com a deste meu conterrâneo. Ou será que a coisa é genética, e o sangue que nos corre nas veias, faz com que a Praça Djemaa el-Fna e os seus respectivos contadores de histórias, se transporte para as noites frias das tabernas alentejanas?
Queiram os deuses que sim!
1 Comments:
Vá passando por cá...a comissaõ de melhoramentos agradece, até porque sei que o blog é visitado por alguma gente, mas poucos deixam rasto da sua passagem, conforme foi agora o caso, o que desde já agradeço.
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