Morreu o Pereirinha. Viva o Pereirinha!
Morreu o Pereirinha. Morreu também um pouco de mim.
O Pereirinha era um daqueles homens que, se eu fosse Deus, seria poupado ao vil momento da partida definitiva. Este meu conterrâneo era a simplicidade elevada à condição humana. Daqui, do alto da minha insignificância, penso o quão difícil terá sido atingir tal patamar.
Embora não vos possa convidar a ver, passa neste momento nesta sala de cinema que é o meu olhar, o filme dos meus encontros com este homem que tinha (no meu entender!) um certo ar de galã de cinema, uma espécie de Humphrey Bogart de Entradas.
É claro que este filme é uma comédia. O Pereirinha era um bem disposto, não só por o ser naturalmente, mas também porque os vapores etílicos tinham nele a capacidade de lhe aprimorar e aflorar esse lado colorido da vida.
Parece que o estou a ver montado na sua bicicleta “kitada” com um telefone de plástico, rádio a pilhas e buzina de peixeiro a dizer-me do seu estado de ebriedade — “Vou levar esta à Maria Antónia!” — E lá se montava no seu estranho veículo a caminho de casa. Dormiria a seguir ao almoço e, lá para a tardinha, regressava ao seu santuário: A Cavalariça.
Se bem me lembro, o Pereirinha só bebia vinho branco, mais das vezes sozinho. Quando alguém lhe perguntava como estava de saúde, erguia o polegar e respondia — “Empecável!”
Nunca ouvi este meu amigo dizer o que quer que fosse e de quem quer que seja. Não é que não tivesse opinião, mas o seu bom feitio, não lhe permitia julgar terceiros. E se a alguém se referia, era sempre para lhe enaltecer as qualidades, deixando para as calendas do esquecimento os defeitos, o que no meu entender é sinónimo de com os outros saber conviver.
Fiz-lhe alguma companhia de copo e de serão. Mais das vezes em silêncio, porque o Pereirinha não era homem de palavreado gratuito, preferindo antes quando o peito lho exigia, fazê-lo em forma de cante.
É famosa certa história com outro dos nossos, o Luis Fernando, quando foram um dia “comprar fósforos” e só regressaram dias depois. O táxi que os levou nesta aventura parou à porta do Pereirinha, abrindo-se em simultâneo as portas traseiras. De repente dois cambaleantes corpos descem do veículo estatelando-se na calçada, ao mesmo tempo que o carro de praça se afasta no horizonte e, estes para se erguerem, tiveram que o fazer costas com costas, num exercício etílico-circence de fino recorte humorístico. Sempre vi este hilariante momento como um plano cinematográfico, uma coisa assim em forma de entardecer.
Pereirinha à porta da Cavalariça em 1998 - fotografado por mim. |
Conseguiram chegar à porta do Pereirinha erectos. Quando Maria Antónia lhes abriu a porta tinha no rosto o semblante de quem não tem muitos amigos. Pereirinha sorri e diz ¬ — “Maria Antónia, chega-te pra lá que o Luís Fernando dorme com a gente esta noite”.
Para além do cenário insólito, resta dizer que o Luís Fernando vivia umas quantas portas acima na mesma correnteza da mesma rua.
Conto esta história, porque é nela que encontro o respeito que me merece este homem bom que hoje nos deixou. Era um fim anunciado, mas neste dia, que é o da morte deste Entradense, devo dizer que parto para a vida mais pobre e mais só.
Resta-me a alegria de saber que quando bater à porta desse santuário para onde vão os homens puros, há de entrar de sorriso estampado na cara, de polegar em riste e a dizer “EMPECÁVEL!!”
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