quarta-feira, maio 22, 2013

A Magia Do Cante


Sou guiado por cheiros. A minha memória é acima de tudo de matriz olfativa. Se dum postigo entreaberto e lá do fundo do quintal vier, um cheirinho a carne frita, ervas nossas, açordas múltiplas, pão acabado de cozer ou tantos dos outros aromas que identificam a vida da aldeia, logo se me escancaram as portas da lembrança e me conduzem a momentos da vida em que aquele perfume esteve presente; mais das vezes revisitações da infância, local temporal onde devo de ter sido bastante feliz.

Não sei se por necessidade de regressar a esse tempo; se por vício de que não me consigo livrar, ainda hoje dou comigo a percorrer as ruas da minha terra, assim à hora a que o sol viaja para outras paragens. E assim, num assomo de clandestinidade, vou metendo o nariz em tudo o que é fresta ou postigo à procura desse nirvana olfativo que busco desde que me conheço.

 Aqui há um tempo atrás, se calhar há mais de década e meia, ao fazer mais uma das minhas incursões odoríficas povo afora, segui um cheiro do louro que perfumava certa fritura. Coelho bravo talvez! A pista olfativa conduziu-me a uma taberna centenária, que agora se chama A Cavalariça, entretanto convertida à restauração, mas que já teve outros nomes, regra geral, o das pessoas que a exploraram.

Era fim de semana, dia de sábado, para ser mais exato. As mesas estavam cheias de homens que desfiavam lamentos em forma de conversa. O cheiro da tal fritura que vinha lá da cozinha inebriava-me os sentidos. Pedi um jarrinho de tinto mais o respectivo petisco do dia e, sentado ao canto do balcão, por ali fiquei a admirar a paisagem sonora que se pressentia.

 Os homens, à medida que chegavam sacavam das suas navalhas e junto com elas saíam dos bolsos pedaços de conduto. De uma algibeira saltava um queijinho curado, de outra um pedaço de linguiça, havia ainda quem trouxesse azeitonas, tomates, pepinos, pêros e outros mata-borrões, que o vinho apesar de líquido, se bebido a seco é capaz de entornar os sentidos e borrar a opa.

Ali era a minha terra, o meu lugar, e aqueles homens, a minha gente. Muitos deles consanguíneos meus por remoto parentesco. Dei comigo a pensar!

 Depois da conversa acabada e num momento em que o silêncio imperou, ouviu-se duma mesa lá do canto uma voz cantarrista que debitava o ponto a preceito. Toda a taberna emudeceu para a ouvir cantar. Assim que esta terminou, logo o alto lhe pegou. Quando o ressoar das vozes se fez ouvir, senti-me de novo transportado para essa região temporal com que comecei este escrito: a minha infância.

 Aqui estou eu! Debaixo da mesma mesa de onde brotam as vozes dos homens que cantam lonjuras. Dos homens que tratam os horizontes por tu. Dos homens que que celebram em uníssono o grito da terra. Dos homens que um dia quero imitar, embora ainda use calções de peitilho. Apesar da minha pouca idade, há muito que jogo este jogo. Para além da perspectiva única, daqui debaixo, quando irrompe o trovão das vozes, parece que toda a terra estremece. Gosto de me sentir invisível e ao mesmo tempo aqui, no olho do furacão, no cerne da tempestade vocal.

 Estou aqui debaixo da mesa grande e ao mesmo tempo ao canto do balcão. Posso sintonizar-me da maneira que mais me aprouver. No silêncio interior com que me protejo, sinto que me agrada esta espécie de estereofonia temporal.

Agora, aqui deste canto de onde, qual esponja, sugo tudo o que à minha volta acontece, penso que foi o cante que despoletou o meu regresso à pátria transtagana. Reflito nesse momento e revejo-o na memória como se dum filme se tratasse. Se tivesse nome chamar-se-ia “Sonho de Uma Noite de Verão”.

Sentado ao sereno à porta de casa da minha tia, ouço ao longe uma espécie de murmúrio cantado, logo seguido de outra voz solitária que se eleva no silêncio da cálida noite. Quando o coro de vozes irrompe, sou invadido por uma certa e estranha melancolia, uma suave corrente eléctrica de que não sei precisar a voltagem, um exato e raro sentimento de quem só quer eternizar aquele instante.

 Resultado! Abalei rua abaixo. À medida que me aproximava da venda onde o cante acontecia, maior era o frenesim que de mim se apoderava, parecia mesmo que no meu peito corria à desfilada um cavalo selvagem em forma de coração. Aí chegado e sem coragem para entrar sentei-me num banco existente à porta do estabelecimento de modo a presenciar aquela “jam session”. Acendi um cigarro e segui na rota do fumo as estrofes cantadas pelos homens da minha terra. Foi nessa noite que morri pela segunda vez. A primeira foi quando me arrancaram ao Alentejo, mas agora.... agora a magia do cante tinha-se apoderado de mim.

 Um arrepio percorreu-me a espinha e devolveu-me o pensamento e ação à Cavalariça onde entretanto juntei a minha voz à dos outros convivas. Entrei assim numa espécie de ritual, numa cerimónia repleta de preceitos só entendível aos que possuem no seu código genético uma determinada matriz. Um cromossoma comum. Uma certa e orgulhosa maneira de dizer:
Sou daqui! 

 A cantata vai ganhando proporções épicas. As vozes afinam-se pelo diapasão dos minúsculos copos de tinto que escorrem pelas apressadas gargantas das vozes vagarosas. Canta-se um pouco de tudo, mas sobretudo o trabalho, a dureza quase esclavagista duma labuta que ainda paira na memória de quem o canta. Mas também se canta o sonho, mormente em duas das modas que me levam ao estremecimento. Uma fala na vontade de quem a canta, de um dia se ir sentar no circulo que leva a lua, para de seguida, alguém ripostar com outra pérola do nosso repertório. Fala esta, duma águia que lá no alto vai voando de polo em polo, o que só por si denota a grandeza poética de quem a escreveu.

 Estas são modas do ocaso, de fim de festa. São temas arrastados, pesados, cadenciados. Requerem muita noite de ensaio, muito copo de vinho e muita paragem respiratória. Este é um território onde só se aventuram os mais dotados vocalmente falando. Pela minha parte fico-me pela emoção de presenciar o momento. Quando a noite se fez verdadeiramente noite, haviam ressoado pelas seculares paredes da velha taberna muitas das modas do nosso cancioneiro.

Depois da célebre — Vamos Nós Saindo — moda abaladiça que determina o fim da cantoria, na rua ainda entoavam algumas ébrias vozes que teimavam em perpetuar o momento.

No caminho que me devolve à realidade, carrego planura na alma. No silêncio da noite calada, apenas sinto o bater descompassado do coração e a estranha e nobre sensação de pertencer a um povo que para cantar tem necessariamente de se abraçar.

O cante está vivo e recomenda-se. Talvez já não se cante tão assiduamente de taberna em taberna como se cantava até há pouco tempo, até porque, também esses locais de culto foram aos poucos desaparecendo. Uns por via da falência da vida ou do negócio, outros por exigências modernistas que teimam em impor legislação que não se coaduna com a dimensão da atividade. E assim, aos poucos, vão desaparecendo esses emblemáticos templos onde o vinho era rei mas o cante, imperador.

 De qualquer modo têm surgido nas últimas décadas, grupos infantis, femininos e masculinos. Uns na pátria do cante, outros comunidades alentejanas espalhadas pelo país. Também há noticias de que o nosso género musical faz escola nalgumas associações lusófonas espalhadas pelo mundo.

O cante está tão vivo que até se candidatou a Património Imaterial da Humanidade. Apoio e torço para que esse galardão nos seja atribuído, mas caso a decisão não nos seja favorável, será sempre, mas sempre... Património Emocional da Alentejanidade, e essa... é a magia do cante. ,

Escrito por pulanito @ maio 22, 2013   0 comentários

terça-feira, maio 14, 2013

Morreu o Pereirinha. Viva o Pereirinha!


 Morreu o Pereirinha. Morreu também um pouco de mim.

 O Pereirinha era um daqueles homens que, se eu fosse Deus, seria poupado ao vil momento da partida definitiva. Este meu conterrâneo era a simplicidade elevada à condição humana. Daqui, do alto da minha insignificância, penso o quão difícil terá sido atingir tal patamar.

Embora não vos possa convidar a ver, passa neste momento nesta sala de cinema que é o meu olhar, o filme dos meus encontros com este homem que tinha (no meu entender!) um certo ar de galã de cinema, uma espécie de Humphrey Bogart de Entradas.

 É claro que este filme é uma comédia. O Pereirinha era um bem disposto, não só por o ser naturalmente, mas também porque os vapores etílicos tinham nele a capacidade de lhe aprimorar e aflorar esse lado colorido da vida.

 Parece que o estou a ver montado na sua bicicleta “kitada” com um telefone de plástico, rádio a pilhas e buzina de peixeiro a dizer-me do seu estado de ebriedade — “Vou levar esta à Maria Antónia!” — E lá se montava no seu estranho veículo a caminho de casa. Dormiria a seguir ao almoço e, lá para a tardinha, regressava ao seu santuário: A Cavalariça.

 Se bem me lembro, o Pereirinha só bebia vinho branco, mais das vezes sozinho. Quando alguém lhe perguntava como estava de saúde, erguia o polegar e respondia — “Empecável!”

 Nunca ouvi este meu amigo dizer o que quer que fosse e de quem quer que seja. Não é que não tivesse opinião, mas o seu bom feitio, não lhe permitia julgar terceiros. E se a alguém se referia, era sempre para lhe enaltecer as qualidades, deixando para as calendas do esquecimento os defeitos, o que no meu entender é sinónimo de com os outros saber conviver.

 Fiz-lhe alguma companhia de copo e de serão. Mais das vezes em silêncio, porque o Pereirinha não era homem de palavreado gratuito, preferindo antes quando o peito lho exigia, fazê-lo em forma de cante.

É famosa certa história com outro dos nossos, o Luis Fernando, quando foram um dia “comprar fósforos” e só regressaram dias depois. O táxi que os levou nesta aventura parou à porta do Pereirinha, abrindo-se em simultâneo as portas traseiras. De repente dois cambaleantes corpos descem do veículo estatelando-se na calçada, ao mesmo tempo que o carro de praça se afasta no horizonte e, estes para se erguerem, tiveram que o fazer costas com costas, num exercício etílico-circence de fino recorte humorístico. Sempre vi este hilariante momento como um plano cinematográfico, uma coisa assim em forma de entardecer.

Pereirinha à porta da Cavalariça em 1998 - fotografado por mim.

Conseguiram chegar à porta do Pereirinha erectos. Quando Maria Antónia lhes abriu a porta tinha no rosto o semblante de quem não tem muitos amigos. Pereirinha sorri e diz ¬ — “Maria Antónia, chega-te pra lá que o Luís Fernando dorme com a gente esta noite”.
Para além do cenário insólito, resta dizer que o Luís Fernando vivia umas quantas portas acima na mesma correnteza da mesma rua.

 Conto esta história, porque é nela que encontro o respeito que me merece este homem bom que hoje nos deixou. Era um fim anunciado, mas neste dia, que é o da morte deste Entradense, devo dizer que parto para a vida mais pobre e mais só.
 Resta-me a alegria de saber que quando bater à porta desse santuário para onde vão os homens puros, há de entrar de sorriso estampado na cara, de polegar em riste e a dizer “EMPECÁVEL!!” 

Escrito por pulanito @ maio 14, 2013   0 comentários

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