Prefácio do FADO para vos aguçar o apetite.
O meu amigo e imenso poeta / escritor alentejano Vitor Encarnação escreveu o lindíssimo prefácio deste FADO que agora reparto convosco na esperança de vos abrir o apetite e claro...que o adquiram, que os tempos não estão famosos para quem edita.
O Napoleão Mira nasceu num sítio onde os horizontes são maiores. Ao fundo da paisagem e dentro dos homens. Conhece a lavra, a germinação, o trigo e o restolho. Sabe que há um começo, um caminho, uma chegada e um recomeço. Sabe que é preciso tempo para se ser maior, mais consistente, magnânimo. Sabe que é preciso vagar para amadurecer.
Não sei como se escreve um romance. Nunca o tentei, aliás dói-me a ideia só de o imaginar.
Um homem perante o papel, à procura de um ponto de partida, da ponta do novelo, tentando achar pequenas pepitas numa montanha de palavras e de dúvidas, insistindo, incansável, acredito que às vezes já com sangue no pensamento, carregando água a baldes para encher o mar que lhe falta dentro de si.
Dias e dias, meses a fio, sozinho, construindo um castelo com pedrinhas tão pequeninas.
Prenhe de si, do desejo que teve em criar, da jura que fez de não desistir. As frases a apertarem-lhe os sentidos todos, as páginas a crescerem lentamente como ossos, os capítulos aflitos como barcos enterrados na areia do tempo que as coisas levam.
As dores que isso deve dar!
Este Fado não vem acompanhado de caldo verde. É-vos servido com lágrimas e risos e sonhos e luta e persistência. Traz a essência de um povo agarrada a si como asas para podermos voar,
além do Tejo, além do Douro, além do destino que nos querem impor, sempre, sempre além de nós.
Se fosse para ficarmos quedos e mudos, se fosse para nos submetermos e abdicarmos do desassossego, da busca e da inquietação de espírito, mais valia não existirmos.
O Napoleão assumiu essas asas e não as esconde. Muito pelo contrário, bate-as intensa e orgulhosamente no céu de papel que ele agora nos traz neste seu primeiro romance.
De cada vez que passo em Entradas - terra natal deste meu bom amigo – sinto que as planícies foram feitas para se notar ainda mais a verticalidade dos alentejanos. Olhando para todos os pontos cardeais, os olhos veem mais, vão mais longe, nada os impede.
Foi de certeza nas linhas destes horizontes grandiosos que ele, enfiado nuns calções e com sabor a figos na boca, escreveu as suas primeiras palavras. Arranjou forma de explicar as coisas de outra maneira, mais doce, mais profunda, mais perfumada. Por querer desenhá-las no princípio do céu, talvez tenha pedido às andorinhas para lá irem em chilreada pendurar as primeiras letras que aprendeu. Depois terá pedido aos falcões que nas suas garras levassem um poema e o entregassem ao sol-posto. A uma águia de asa redonda pediu que fosse entregar uma crónica à luz que sobra depois de a terra guardar o sol todo dentro de si. E agora, porque é essência
desta planície, terá pedido a uma abetarda que fosse deixar este Fado no firmamento. Para nós lermos limpidamente e sem grilhetas nas emoções.
Afastando a vã espuma dos dias, mergulhando nas entranhas da vida, o autor, homem de planuras, marés cheias de terra e de mar, com o sul a encharcar-lhe a pronúncia, transtagano até ao tutano, transporta-nos neste seu Fado até um espaço e um tempo onde temos necessariamente de ir para não nos esquecermos da matéria de que somos feitos.
Num exercício de defesa incondicional da memória, estamos perante uma abordagem literária da nossa existência enquanto povo que sangrou de norte a sul durante décadas. Porque há cada vez mais gente a querer aligeirar essa dor e branquear esse negrume, é preciso escrever sem peias, sem eufemismos nem meias palavras.
A modernidade é, por vezes, voraz, perigosa. Este tempo presente ameaça plastificar-nos, impele-nos a não pensar, a não questionar. A esquecer. Mas não, o passado não é uma campa rasa, um buraco esquecido, uma vala comum onde está enterrada a nossa história.
Nós somos o que fomos. O Napoleão sabe-o bem. Neste seu romance, ele é um cuidador de passados, trá-lo nas palmas das mãos, afaga-lhe as rugas, faz-lhe justiça, presta-lhe homenagem, penteia-lhe os cabelos brancos, cuida dele como um filho cuida dum pai que ama.
É curiosa a sua transumância para terras de granito. Parece que levou as planícies e as levantou do chão, erguendo serras, penhascos, florestas e vinhedos. E o granito surge como uma simbologia plena da força interior de que os homens e as mulheres deste país se sustentaram para não deixarem que lhes destruíssem as suas existências e, acalentados pela
força dos sonhos, pudessem construir o futuro a que tinham direito.
Neste Fado presta-se homenagem aos seres vertebrados, inquebrantáveis. É a epopeia dos homens e das mulheres comuns. Nada é mais épico do que uma viagem a caminho da liberdade. Para sairmos da nada, do vazio, da impossibilidade, da desilusão, seja através do amor, seja através do intelecto, é preciso revoltarmo-nos, atravessarmos infernos, aproveitarmos cada vereda, renunciarmos ao medo, potenciarmos cada assomo de coragem, multiplicarmos por mil cada lampejo de ânimo.
Ao longo desta obra há uma história de Portugal vívida, reconhecível, familiar a tantos e tantos de nós. Em cada página encontramos pedaços da nossa vida, em cada capítulo lemos o diário de gerações inteiras. Os nomes dos personagens são os nomes dos nossos pais, dos nossos
avós, dos vizinhos, dos conhecidos.
Este livro é sobre duas viagens. Sobre uma que tem lugar no mundo físico, onde os homens e mulheres calcorreiam quilómetros a pé e dobram serras e atravessam rios e noites escuras, fogem e depois se acham. E sobre outra que acontece interiormente, onde os homens e as mulheres percorrem o seu próprio peito e dobram o raciocínio e atravessam o coração, perdem-se e depois se encontram. As duas viagens são, pois, uma só.
Este Fado é intenso. Não será difícil encontrarmos guitarras dentro de nós para o acompanharmos. Cada um irá encontrar o tom e o refrão. Assomarão lágrimas, leremos ternura, haverá mágoa, repetiremos o amor, trautearemos a felicidade, arderemos no desejo da carne, cavaremos sepulturas, tocaremos estrelas.
Façamos então silêncio, recostemo-nos nos espaldares das emoções, que o Napoleão Mira, de olhos bem abertos e sentidos despertos, com voz límpida rasgando omissões e esquecimentos, com o peito cheio de saudade e o coração cheio de ternura vai contar o Fado.
Trinai, palavras, trinai.
3 Comments:
Simplesmente GENIAL
Mto BOM
Olá. Mestre Vitor. Parabéns pelo prefácio que só vai enriquecer o livro do PULANITO. O "Fado" deve ser outro bom livro que nós os Curvas de S.Matias vamos querer um exemplar. Para mim o "poeta" é aquele que consegue por no papel aquilo que os outros pensam mas não o sabem fazer. Graças aos dois. Abraços alentejanos. J. Curv a
Impecavelmente escrito.....porque sentido este prefácio que nos transporta para as nossas origens...em suma para o que somos!Parabéns aos dois, é pela complementariedade e pela cumplicidade que somos mais felizes...mais pessoas nesta terra pátria!
Maria Lucília
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