Feira de Castro Revisitada
Ela aí está a marcar mais um ciclo nas nossas vidas.
Falo-vos da inevitável Feira de Castro, esse incontornável marco no calendário de uma certa estirpe alentejana.
Como as aves que todos os anos voltam ao seu ninho, também uma determinada casta transtagana acorre anualmente no terceiro fim-de-semana de Outubro a um chamamento quase irracional. Uma convocação genética, visceral, que marca na vida de cada um que aqui demanda o virar de uma página. Aqui é onde se fazem balanços do ciclo que agora se fecha e dos projetos para o outro que na segunda-feira seguinte à feira se abrirá.
O penetrante olhar duma jovem cigana revela-nos a magia secular desta feira, olhos esses que se escancaram como se fossem gelosias, por onde podemos ver muitos dos nossos ancestres, predecessores deste rito de culto e de encanto.
Descemos rua abaixo como quem navega mar adentro, deixando-nos levar por imaginárias ruelas desta Medina de pano feita, onde o perfume outonal nos transporta a um tempo onde o tempo bem que podia parar. Ele são: serrenhos que das longínquas brenhas do Caldeirão, Monchique ou Espinhaço de Cão, se fazem ao caminho para aqui mercarem o que a terra dá ou o que as suas hábeis mãos constroem.
Ele são: oleiros barristas de Beringel que derramam a sua arte em forma de objetos do nosso quotidiano.
Ele são: artistas, vigaristas, carteiristas e outras especialistas versados na arte de iludir o pagode com malabarismos cartomantes e outras manigâncias, sendo que o importante é sacar a nota a ingénuos incautos.
Ele são: cantarristas baldoeiros que no embalo do som de arame da viola campaniça entoam arabescas melopeias vindas lá do fundo da alma e dos confins da planície. Terra onde sonho rima com gente e medronho com aguardente.
Ele são: vetustas prostitutas que numa lógica de "serviço público" despertam a libido de pastores, almocreves e outros tantos tais, para céleres e breves prazeres carnais.
Ele são: vertiginosos e corajosos pilotos que fazem com que o mundo de repente fique de pernas para o ar no número do poço da morte, ou da sorte, consoante o ângulo de espectadores e artistas.
Ele são: sapateiros almodovarenses que num pedaço de papelão desenham a forma da bota que há de um dia pisar este chão.
Ele são: ciganos de olhos de lume que num cantado queixume expressam assim a arte canora da raça calé.
Ele são: abastados e anafados lavradores que passeiam a sua abundância por entre a populaça e, se com o indicador e o polegar de uma das mãos afiam sistematicamente a ponta do bigode, a outra repousa no bolso do colete, só daí saindo para retirar o relógio de corrente com que confere o acerto do mesmo com as batidas do sino da igreja.
Ele são: barbeiros tendeiros que escanhoam barbas a fregueses que antes de se sentarem parecem malteses e quando este sacode o pano que lhes envolvia o pescoço dando por findo o seu trabalho, olham-se ao espelho, sorriem... parecem burgueses!
Ele são: tanta gente que até parece que todo o Alentejo deste mundo se mudou para aqui durante os dias de alegria que a feira representa.
Nos dias que correm, muitas destas figuras deixaram de existir, mas outras ainda por lá vão mercando os seus sonhos em forma de coisas que fazem as pessoas felizes, o que faz com que a grande feira do sul continue inexplicavelmente a fazer parte indissociável do calendário das nossas vidas.
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