Amanheceres
A toada matinal da minha aldeia, é uma pressentida sinfonia que descortino nos sons que também despertam para mais um dia das nossas vidas.
O inevitável canto do galo anuncia a alvorada, como se profetizasse mais um ciclo que há-de recomeçar quando este de novo acordar para a vida na manhã seguinte.

Maria Antónia - varrendo a alma às pedras da calçada
Maria Antónia iluminada pelo foco dos primeiros raios solares, é primeira figura na ribalta da avenida. Como sempre, varre as pedras da calçada até lhes polir a alma. Primo Revés no silêncio da manhã, conduz o seu minúsculo e tilitante rebanho para mais um dia de pastorícia. Não serão mais de uma dúzia de ovelhas e um ou outro borreguito, mas António Revés fá-lo com a mesma destreza e profissionalismo como se fossem centenas ou até milhares. Acena-me no seu passo apressado levantando o cajado a sugerir um bom dia.

Primo Revés - Posando para a posteridade
A camioneta que transporta os mineiros entradenses às entranhas da terra há muito que passou. Na mina, os turnos laborais não se compadecem com auroras boreais nem rituais matinais no recomeço de cada dia; é preciso arrancar das suas visceras o pão nosso de cada dia em forma de minério. A carrinha do Carapeto já se vê descer a avenida. Por estas horas da manhã e nesta primeira passagem ainda o faz sem se fazer anunciar através da sua irritante corneta. Afinal, os fregueses são sempre os mesmos, logo os poisos são também os de sempre.
Do interior da carrinha solta-se um cheiro inebriante por todos conhecido desde que são gente. É o inevitável perfume a pão fresco que inunda a avenida à medida que Carapeto faz a sua lenta aproximação, trazendo à porta de cada um essa benesse que repete a cada dia (excepto ao Domingo) aquele que sabemos ser um dos melhores pães do mundo.
Zé das Pestanas faz a sua primeira vistoria ao jardim a seu cargo. Como tudo se encontra em ordem, liga os expressores de rega que hão-de fazer com que os aromas florais da manhã surjam mais nítidos e a água que agora lhes fornece seja uma dádiva para o dia de brasa que aí se apresenta apesar de já irmos bem entradotes no Setembro.
Acordei cedo, para cedo partir em direcção à capital onde por força de afazeres vou ter de passar o fim-de-semana, coisa que já não faço há muito, mas mesmo muito tempo.
Sábado, vá de trabalhar que nem um cão a preparar as instalações onde minha filhota Catarina vai passar a viver; ou seremos nós que através destas tarefas nos recusamos a aceitar uma separação que sabemos nos há-de influenciar a todos em tempos vindouros?
Como desde há muitos anos, no Domingo voltei a acordar antes do galo da minha terra. Rebolei-me, tentei readormecer, mas a cama já há muito que me empurrava dela para fora. Vai daí, eu e a Natália decidimos ser espectadores dum amanhecer alfacinha, coisa que há muitos anos não presenciava.
Sempre disse que tinha com a cidade branca, uma relação de amor - ódio. Detesto a balbúrdia citadina, o ruído permanente dos carros, carrinhos e carrões, pessoas, sirenes, industrias, gente apressada, mal educada, taciturna e sei lá quantas mais situações parasitas que invadem a urbe de segunda a sexta, mas ao fim-de-semana, a cidade veste-se de Maria Lisboa e convida-nos a penetrar nos recantos domingueiros dos seus bairros tradicionais.
Descemos até à baixa, estaciono o veículo e decidimos partir à procura da pureza, da personalidade desta outra urbe que pulsa no pregão de cada beco, na roupa que se estende em domingueira tarefa.
As ruas estão desertas de carros. Podemos olhar com olhos de ver as gelosias que se escancaram de uma só vez, deixando a luz matinal inundar de claridade as casas dos lisboetas, destacando-se deste cenário o sorriso franco duma jovem lisboeta que de braços abertos à vida saúda o dia que chega, mas que de imediato se envergonha e se recolhe, ao reparar que é motivo da nossa súbita curiosidade.
O rio grande vai-nos surgindo lentamente no nosso campo visual, motivo para que os nossos companheiros turistas de ocasião registem o momento nas suas modernas máquinas fotográficas.

Elevador do Lavre - à descoberta duma Lisboa que há muito não visitava
Um casal de imperceptível nacionalidade (talvez noruegueses) pede-me que os fotografe em frente ao surpreendente veiculo, tanto na forma como na cor amarela, e que nos há-de conduzir a todos ao topo duma das sete colinas desta domingueira Lisboa.
A rápida subida, permite-nos alcançar o cume num ápice. Caminhamos de cabeça voltada aos céus admirando os jogos geométricos que o cenário Lisbonense sugere.
À passagem pelo Campo dos Mártires da Pátria, admiramo-nos pelas inúmeras placas marmóreas que jazem aos pés da estátua do médico Sousa Martins, como forma de agradecimentos pelas possiveis curas a este físico atribuídas. Coisas do esotérico que respeito, mas para as quais sou completamente céptico.
Lisbon revisited
Descemos depois a íngreme Calçada de Santana que desemboca no largo de São Domingos, onde a cidade reencontra a alegre azáfama em dia do Senhor.
Subimos depois ao Chiado, onde o enorme Fernando Pessoa, não deixa respirar esse outro grande poeta que dá nome à praça, subalternando-o no seu próprio território.
Percorremos ainda o Bairro mais Alto, onde as paredes grafitadas dão a esta zona da cidade um aspecto caótico que tanto pode parecer desprezível, como há quem encontre nesta amálgama hieroglífica alguma beleza plástica. Por mim prefiro as paredes nuas, onde o amarelo de Lisboa possa sobressair em cada fachada ou no rebordo subtil de uma qualquer água furtada.
Descemos depois as escadinhas do Duque onde num enquadramento excepcional podemos ter uma excelente perspectiva do Castelo de S. Jorge.
Escadinhas do Duque
A manhã Lisboeta há muito que havia despertado para a vida dominical, miles de turistas partem agora à descoberta da cidade luminosa e sente-se nos seus sorrisos que gostam do que os olhos vêm. Nós também fizemos desta manhã uma manhã turística onde tivemos o privilégio de assistir ao lento e preguiçoso despertar da cidade dos meus pressentimentos.
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