quarta-feira, agosto 26, 2009

A Baiuca de Alfama


fadista amador cantando na Baiuca


O Fernando Cruz, é meu amigo há mais de 47 anos. Escrevo isto e quase me assusto!
Mas contra factos, não tenho argumentos. No implacável desfolhar dos calendários, no apressado correr de todos os grãos de areia de todas as ampulhetas do mundo, no galopar tiquetaqueante de todos os ponteiros dos relógios, nos sulcos vertiginosos de todas as rugas de todas as faces, sou confrontado com essa terrível mas fascinante realidade, que é a vida!
Quando ocasionalmente nos encontramos tendemos a fazer balanços, tanto mais que consideramos um raro privilégio havermos cultivado esta amizade ao longo das várias vidas que cada um de nós viveu…e acreditem que as vivemos!!
Ao fim da tarde de ontem (segunda 24-08) liguei-lhe para o convidar para jantar, coisa a que acedeu com júbilo e prontidão, até porque temos assuntos a tratar que necessitam de ser urgentemente agendados.

- Onde queres ir jantar? – perguntou
- Não sei, mas talvez a uma tasca tão velha como a nossa amizade – respondi
- Que me dizes a deambular por Alfama e logo se vê o que se arranja – sugeriu
- Boa ideia. Bora lá - anui

A tarde de Agosto estava quente a pedir um itinerário de copinhos de branco e pastelinhos vários, pelas tascas que ainda não se transformaram em poiso de turistas com pataniscas de bacalhau a preços inusitados.
Como o Fernando não bebe há mais de uma década, não me calhou bem enfrentar o mármore dos balcões a solo, vai daí ficámo-nos pelo passeio pelas múltiplas vielas deste bairro que no virar de cada beco, no estreitar de cada ruela, nos postigos com vista para a novela da tarde, na traquinice das crianças felizes que nos atropelam de juventude, no jeito orgulhosamente bairrista das mulheres que em grupo descem a calçada, nos pintas “carteiros” que topo à distância, no olhar sensível do artista que imortaliza a traço de carvão os cenários da sua inspiração e me fazem lembrar os cascos velhos de muitas das cidades árabes que conheço.

Rejuvenesço sempre que me espanto, e hoje é dia de deslumbramento!

Há um mar de histórias no naufrágio de cada olhar em que insisto ancorar, e destas deambulações faço o meu jogo favorito: inventar vidas de carne e de lume. Vidas com infâncias de arco e gancheta, pião, carica e cromos da bola. Juventudes de incêndio e paixão, sonho e maresia. Ocasos de sabedoria e contemplação.

Destas deambulações faço o meu percurso pelas ancestrais pedras deste fascinante bairro alfacinha.

Aspecto da fachada da Baiuca

Ao passar pela estreitíssima rua de S. Miguel damos com uma tasca que outro amigo me havia em tempos recomendado e que por mera coincidência havíamos encontrado.
-É aqui que vamos jantar. Decidi imperialmente sem dar oportunidade ao Fernando de contra-propor .
O lugar chama-se A Baiuca e é um daqueles minúsculos estabelecimentos que não leva mais que duas dúzias de clientes.
Miro em redor e parecem-me quase todos estrangeiros. Gente com olho para o genuíno - penso para com os meus botões!
A proprietária senta-nos juntamente com outra gente que descubro que também não se conhece, mas ali está, ombro com ombro, degustando os excelentes lombos de bacalhau que Dona Lídia a proprietária recomenda a toda a gente.
À porta uns “pintas” locais deambulam por ali como que à procura de um rumo, de uma porta que se escancare para um norte mais prazenteiro.
Um jovem artista de cabelo apanhado à samurai, prepara o seu ganha-pão em forma de carvão e papel pergaminho onde mais tarde esbanjará génio e arte a preços verdadeiramente simbólicos.
A casa enche-se rapidamente e comento com o meu amigo a sorte que tivemos. Nisto dois guitarristas agarram nos respectivos instrumentos e dum canto da Baiuca debitam os sons caracteristicos da cidade branca no dengoso gemer da guitarra portuguesa.

Silêncio que se vai cantar o fado!

Ordena Dona Lídia, proprietária, gerente e mestre de cerimónias desta memorável noite, onde o cante genuíno das vozes populares dos vizinhos, convidados, amadores e da própria Dona Lídia, debitam para os que ali repastam o doce lânguido da canção de Lisboa.
Dona Lidia entregando-se nas mãos do fado

O quadro não podia ser mais natural. Os “pintas” também eles fadistas, encantam quem os escuta, num número há muito repetido e combinado.
Um deles canta dentro de casa, outro responde da rua, criando uma atmosfera de privilégio para aqueles que ali foram pôr à prova os seus sentidos.
Aparecem à larga porta, mulheres, crianças, bêbados, artistas, turistas e demais figuras que fazem daquela passagem onde a luz incide um quadro vivo de que retiro particular prazer.
Estive na Baiuca como peixe na água, e como hoje era dia de S. Deslumbramento, acendo-lhe uma vela imaginária a agradecer tão raro pressentimento.

Etiquetas: A Baiuca, alfama, Bairro Alto, fado, Mouraria

Escrito por pulanito @ agosto 26, 2009   6 comentários

terça-feira, setembro 16, 2008

Amanheceres

Gosto de amanheceres. E quanto mais temporões forem, tanto melhor! Gosto de sentir a manhã desgrenhada a espreguiçar-se, acariciando-se no despontar dos primeiros raios do astro rei.
A toada matinal da minha aldeia, é uma pressentida sinfonia que descortino nos sons que também despertam para mais um dia das nossas vidas.
O inevitável canto do galo anuncia a alvorada, como se profetizasse mais um ciclo que há-de recomeçar quando este de novo acordar para a vida na manhã seguinte.

Maria Antónia - varrendo a alma às pedras da calçada


Maria Antónia iluminada pelo foco dos primeiros raios solares, é primeira figura na ribalta da avenida. Como sempre, varre as pedras da calçada até lhes polir a alma. Primo Revés no silêncio da manhã, conduz o seu minúsculo e tilitante rebanho para mais um dia de pastorícia. Não serão mais de uma dúzia de ovelhas e um ou outro borreguito, mas António Revés fá-lo com a mesma destreza e profissionalismo como se fossem centenas ou até milhares. Acena-me no seu passo apressado levantando o cajado a sugerir um bom dia.


Primo Revés - Posando para a posteridade

A camioneta que transporta os mineiros entradenses às entranhas da terra há muito que passou. Na mina, os turnos laborais não se compadecem com auroras boreais nem rituais matinais no recomeço de cada dia; é preciso arrancar das suas visceras o pão nosso de cada dia em forma de minério. A carrinha do Carapeto já se vê descer a avenida. Por estas horas da manhã e nesta primeira passagem ainda o faz sem se fazer anunciar através da sua irritante corneta. Afinal, os fregueses são sempre os mesmos, logo os poisos são também os de sempre.
Do interior da carrinha solta-se um cheiro inebriante por todos conhecido desde que são gente. É o inevitável perfume a pão fresco que inunda a avenida à medida que Carapeto faz a sua lenta aproximação, trazendo à porta de cada um essa benesse que repete a cada dia (excepto ao Domingo) aquele que sabemos ser um dos melhores pães do mundo.
Zé das Pestanas faz a sua primeira vistoria ao jardim a seu cargo. Como tudo se encontra em ordem, liga os expressores de rega que hão-de fazer com que os aromas florais da manhã surjam mais nítidos e a água que agora lhes fornece seja uma dádiva para o dia de brasa que aí se apresenta apesar de já irmos bem entradotes no Setembro.
Acordei cedo, para cedo partir em direcção à capital onde por força de afazeres vou ter de passar o fim-de-semana, coisa que já não faço há muito, mas mesmo muito tempo.


Sábado, vá de trabalhar que nem um cão a preparar as instalações onde minha filhota Catarina vai passar a viver; ou seremos nós que através destas tarefas nos recusamos a aceitar uma separação que sabemos nos há-de influenciar a todos em tempos vindouros?
Como desde há muitos anos, no Domingo voltei a acordar antes do galo da minha terra. Rebolei-me, tentei readormecer, mas a cama já há muito que me empurrava dela para fora. Vai daí, eu e a Natália decidimos ser espectadores dum amanhecer alfacinha, coisa que há muitos anos não presenciava.
Sempre disse que tinha com a cidade branca, uma relação de amor - ódio. Detesto a balbúrdia citadina, o ruído permanente dos carros, carrinhos e carrões, pessoas, sirenes, industrias, gente apressada, mal educada, taciturna e sei lá quantas mais situações parasitas que invadem a urbe de segunda a sexta, mas ao fim-de-semana, a cidade veste-se de Maria Lisboa e convida-nos a penetrar nos recantos domingueiros dos seus bairros tradicionais.
Descemos até à baixa, estaciono o veículo e decidimos partir à procura da pureza, da personalidade desta outra urbe que pulsa no pregão de cada beco, na roupa que se estende em domingueira tarefa.
As ruas estão desertas de carros. Podemos olhar com olhos de ver as gelosias que se escancaram de uma só vez, deixando a luz matinal inundar de claridade as casas dos lisboetas, destacando-se deste cenário o sorriso franco duma jovem lisboeta que de braços abertos à vida saúda o dia que chega, mas que de imediato se envergonha e se recolhe, ao reparar que é motivo da nossa súbita curiosidade.

Subimos (numa estreia para ambos) o elevador do Lavra. À medida que o ascensor galga o carril centenário, vamos descortinando uma paisagem lisboeta que vai ganhando um inusitado ângulo cinematográfico.
O rio grande vai-nos surgindo lentamente no nosso campo visual, motivo para que os nossos companheiros turistas de ocasião registem o momento nas suas modernas máquinas fotográficas.

Elevador do Lavre - à descoberta duma Lisboa que há muito não visitava

Um casal de imperceptível nacionalidade (talvez noruegueses) pede-me que os fotografe em frente ao surpreendente veiculo, tanto na forma como na cor amarela, e que nos há-de conduzir a todos ao topo duma das sete colinas desta domingueira Lisboa.
A rápida subida, permite-nos alcançar o cume num ápice. Caminhamos de cabeça voltada aos céus admirando os jogos geométricos que o cenário Lisbonense sugere.
À passagem pelo Campo dos Mártires da Pátria, admiramo-nos pelas inúmeras placas marmóreas que jazem aos pés da estátua do médico Sousa Martins, como forma de agradecimentos pelas possiveis curas a este físico atribuídas. Coisas do esotérico que respeito, mas para as quais sou completamente céptico.


Lisbon revisited


Descemos depois a íngreme Calçada de Santana que desemboca no largo de São Domingos, onde a cidade reencontra a alegre azáfama em dia do Senhor.
Subimos depois ao Chiado, onde o enorme Fernando Pessoa, não deixa respirar esse outro grande poeta que dá nome à praça, subalternando-o no seu próprio território.
Percorremos ainda o Bairro mais Alto, onde as paredes grafitadas dão a esta zona da cidade um aspecto caótico que tanto pode parecer desprezível, como há quem encontre nesta amálgama hieroglífica alguma beleza plástica. Por mim prefiro as paredes nuas, onde o amarelo de Lisboa possa sobressair em cada fachada ou no rebordo subtil de uma qualquer água furtada.
Descemos depois as escadinhas do Duque onde num enquadramento excepcional podemos ter uma excelente perspectiva do Castelo de S. Jorge.

Escadinhas do Duque


A manhã Lisboeta há muito que havia despertado para a vida dominical, miles de turistas partem agora à descoberta da cidade luminosa e sente-se nos seus sorrisos que gostam do que os olhos vêm. Nós também fizemos desta manhã uma manhã turística onde tivemos o privilégio de assistir ao lento e preguiçoso despertar da cidade dos meus pressentimentos.

Etiquetas: alfama, Bairro Alto, Calçada do duque, chiado, elevador do lavra, Entradas - castro verde, Lisboa

Escrito por pulanito @ setembro 16, 2008   15 comentários

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